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O Grupo de Estudos de Educação Infantil e Infâncias (GEIN) atua em pesquisas e na formação acadêmica de professores e gestores no campo da infância deste 1996. Além da pesquisa e da docência na Graduação e no Pós-graduação na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FACED/UFRGS), o GEIN vem desenvolvendo atividades de extensão e assessoria, bem como a publicação de livros e artigos sobre formação de professores de educação infantil, infâncias, processos de aprendizagem, sexualidade e gênero, proposições pedagógicas em espaços educativos, entre outras temáticas. A partir do GEIN e da área de Educação Infantil da FACED-UFRGS criamos a linha de pesquisa, junto ao Programa de Pós-graduação em Educação, Estudos Sobre Infãncias, tendo como objetivo central examinar as infâncias e sua educação na multiplicidade e heterogeneidade de espaços e contextos, explorando e examinando as diferentes versões das infâncias na contemporaneidade, suas propostas educativas, bem como as pedagogias e produções culturais direcionadas às crianças.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Pesquisa etnográfica realizada com as crianças de Jardins de Infância nos EUA e em Itália.


Pesquisa etnográfica realizada com as crianças de Jardins de Infância nos EUA e em Itália.

William Corsaro,
Departamento de Sociologia, Indiana University
Bloomington, Indiana, USA


Entrada no terreno, aceitação e natureza da participação em estudos etnográficos com crianças pequenas.

Tal como Tom Rizzo, Jack Bates e eu próprio argumentámos num artigo publicado há uns anos atrás (Rizzo, Corsaro & Bates, 1992), a entrada no terreno é crucial na etnografia, uma vez que um dos seus objectivos principais, enquanto método interpretativo, é o estabelecimento do estatuto de membro e a adopção de uma perspectiva ou ponto de vista “dos de dentro”. Descobri que a aceitação no mundo das crianças pode ser especialmente desafiadora, devido às diferenças óbvias entre adultos e crianças em termos de maturidade cognitiva e comunicativa, poder (tanto real como percebido) e tamanho físico (Corsaro, 1985).
Enquanto alguns etnógrafos de crianças (Mandell, 1988) advogam que a completa aceitação (dos investigadores pelas crianças) é possível e a participação completa (pelos investigadores nos mundos das crianças) é desejável, outros argumentam que certas diferenças entre adultos e crianças (particularmente o tamanho físico) não pode ser completamente ultrapassado e, portanto, sugerem algumas formas de participação limitada ou periférica (Corsaro, 1985; Fine & Sandstorm, 1988). Outros ainda argumentam que estudar as suas próprias crianças, os pais como investigadores (Adler & Adler, 1998) pode obviar muitos dos desafios e ultrapassar a necessidade de constituir o que designam por “investigador-de-ocasião[1] e, portanto, uma espécie de relação artificial”. Todavia, para mim, a estratégia dos pais como investigadores levanta uma série de conflitos de papel que excedem a sua utilidade prática. Em qualquer um dos casos, as decisões relativas ao grau e à natureza da participação variarão dado o terreno particular da etnografia.
Independentemente da posição de cada um acerca do grau de participação, é necessária documentação [para formalizar] para a entrada, a aceitação e participação em estudos etnográficos, por várias razões. Muito obviamente, tal documentação permite prevenir possíveis efeitos disruptivos do processo de pesquisa no normal desenrolar das rotinas e práticas culturais. Aqui a preocupação vai além do grau de participação para o registo dos efeitos das práticas da rotina de recolha de dados (como a entrevista informal, registos, gravação audiovisual e recolha de artefactos). Em segundo lugar, e de um modo mais subtil, uma vez que a entrada, aceitação e participação são processos com histórias em desenvolvimento, o seu registo fornece elementos acerca dos processos produtivos e reprodutivos nas culturas locais.
Creio que todas as etnografias beneficiariam (tanto metodologica como teoricamente) de um registo cuidadoso do processo de entrada no terreno. Uma vez mais, quero sublinhar que tal registo nunca pode estar completamente incluído nas publicações porque, num sentido prático, seria um longo capítulo, artigo enorme, ou até um livro acerca de e em si próprio. Por exemplo, muitas vezes, nas descrições do meu primeiro trabalho eu disfarcei/encobri a minha aceitação pelos adultos (primeiramente, professores) por referências em lidar com “os porteiros”. Contudo, no meu último trabalho em Itália, tal como discuti num artigo com a minha colega Luisa Molinari (Corsaro & Molinari, 2000), demos muito mais atenção à nossa aceitação pelos professores e trabalhámos em equipa para levar a cabo a entrada no terreno.
Neste artigo revejo como é que desencadeei a entrada no terreno e a aceitação em escolas e culturas de pares locais, em vários dos JI que estudei ao longo dos últimos 28 anos. Ao longo deste tempo, tenho visto o meu trabalho a deslocar-se de uma pesquisa sobre para uma pesquisa com crianças (cf. Christensen & James, 2000).

Tornar-me um etnógrafo das culturas dos miúdos
“Entrei na parte de fora da área de brincar do JI e caminhei para junto de duas meninas de 4 anos, Betty e Jenny, que estavam sentadas num monte de areia. Assim que cheguei junto delas, Betty disse: “Tu não podes brincar connosco!”
“Porque não?” – perguntei eu.
“Porque és muito grande” – respondeu a Betty.
“Eu sento-me” – disse eu enquanto me sentava na a areia perto das meninas.
“Ainda estás muito grande”, disse a Jenny.
“Yeah, és o Bill Grande!” – gritou a Betty.
“Posso ficar a olhar?” – perguntei.
“Okay.” – disse a Jenny. “Mas não tocas em nada!”
“Yeah”, disse Betty, “Ficas só a olhar, está bem?”
“Ok”.
“Ok, Bill Grande!”, disse a Jenny.
“Ok.”
(Mais tarde, Bill Grande, foi brincar.)

Etnografia é o método que os antropólogos utilizam mais frequentemente para estudar culturas exóticas. Este método requer que o investigador entre, seja aceite e participe nas vidas daqueles que estuda. Neste sentido, a etnografia implica, por assim dizer, “tornar-se nativo”. Estou convencido de que as crianças têm as suas próprias culturas e eu sempre quis tornar-me parte de e documentá-las. Para fazer isso eu precisei de entrar nas vidas quotidianas das crianças – para ser uma das crianças o melhor que pudesse.
Mas como é que um homem crescido faz para ser aceite nos mundos das crianças? Quando pela primeira vez iniciei a minha pesquisa não havia modelos estabelecidos para seguir. Por isso quando entrei no primeiro dos muitos JI que tenho estudado nos EUA e na Itália, decidi que a melhor maneira de me tornar parte dos mundos das crianças era “não agir como um adulto típico”. Este artigo descreve como é que eu fiz isso em vários dos diferentes contextos de educação pré-escolar de que me tornei parte e partilhei com as crianças, os seus professores e pais. Vamos começar pelo início, há muitos anos atrás em Berkeley, Califórnia.

Berkerley, Califórnia (1974-75)

Quando me preparava para a minha pesquisa em Berkeley, tomei em consideração o conselho de um dos professores e passei várias semanas a observar a interacção na escola de uma área de observação restrita. Margaret, a professora, observou que nas primeiras semanas de aulas as crianças estavam ainda se estavam a adaptar ao novo contexto e os pais e professores estavam também um pouco tensos com o início do novo ano. Por isso, ela sugeriu que eu observasse apenas uma área delimitada[2] em vez da área extensa da escola, no seu interior e exterior. Esta área de observação era usada pelos pais e por alguns psicólogos do desenvolvimento da universidade mais próxima que realizavam observações para pesquisa. Nos meus primeiros dias de observação fiquei esmagado pelo número, variação e complexidade dos eventos interactivos que se desenrolavam sob os meus olhos. No primeiro dia, eu não tinha uma ideia clara de como registar as minhas notas de campo, por isso limitei-me a olhar e tentar perceber o sentido geral das coisas. Nos dias que seguiram, comecei a focalizar no que acontecia na escola, quando e onde, e descobri uma rotina geral. Comecei também a fazer um levantamento das várias actividades eram que as crianças participavam, incluindo as que eram dirigidas pelos professores e as que elas próprias criavam. Gradualmente, também aprendi os nomes das crianças e, até certo ponto, as suas várias personalidades.
Durante a terceira semana comecei a pensar como é que ia entrar e ser aceite dentro deste grupo de crianças que cada vez se me tornavam mais familiares. Uma vez que eu queria tentar envolver-me directamente nas interacções entre pares das crianças, sabia que não queria ser visto como um adulto típico. O primeiro passo para descobrir como é que isto se fazia foi observar de perto como é que os adultos interagiam com as crianças. Aqui está o que observei.
Os adultos eram, antes mais, activos e controlavam a sua interacção com as crianças. Por exemplo, os pais e outros visitantes adultos da escola, aproximavam-se frequentemente das crianças, iniciavam a interacção e faziam uma série de perguntas:

Um dia, uma mãe que visitava o JI, aproximou-se de uma mesa onde estavam duas meninas a desenhar. A mãe olhou por momentos, inclinou-se e olhou para baixo, para as meninas.
“O que estás a desenhar?” – perguntou ela.
“Uma árvore” – respondeu uma das meninas.
Faz-se um silêncio enquanto as meninas continuam o seu trabalho.
“Que cor é a árvore?” - pergunta a mãe.
“Verde”, diz a menina, sem olhar e continuando a desenhar.
“Que mais outras coisas são verdes?” – perguntou a mãe.
Outro silêncio e depois a outra menina disse: “Erva”.
A mãe endireitou-se, olhou em volta da sala e seguiu em direcção a outra área.

Os adultos querem iniciar conversas com as crianças mas sentem-se desconfortáveis com as respostas minimais das crianças e a sua tolerância do que (para os adultos) parecem ser longos silêncios. Frequentemente, tal como no exemplo acima descrito, os adultos começam a fazer perguntas tipo teste (coisas de que já sabem a resposta, como a cor da árvore) para ver o que as crianças pensam acerca do que estão a fazer ou simplesmente para fazer da troca de palavras uma experiência de aprendizagem.
Os professores também fazem muitas perguntas. Contudo, são mais sofisticados em desenvolver o potencial de aprendizagem das suas conversas e interacções com as crianças. Também dirigem e monitorizam as brincadeiras das crianças, ajudam quando há problemas e dizem-lhes o que podem ou não podem fazer. Finalmente, descobri que os adultos (professores ou visitantes) restringiam o seu contacto com as crianças a áreas específicas do JI. Os adultos raramente entravam na “casinha”, no monte de areia do recreio, barras ou casa de trepar.
Vendo como os adultos eram tão activos e controladores nas interacções com as crianças no JI, decidi adoptar uma estratégia de entrada “reactiva”. Na primeira semana na escola, disponibilizei-me continuamente em áreas do JI dominadas pelas crianças e esperei que as crianças reagissem à minha presença. Durante os primeiros dias, os resultados não foram encorajadores. Para além de vários sorrisos e olhares fixos perplexos, as crianças ignoraram-me bastante. Das centenas de horas que tenho observado em JI, estas foram as mais difíceis para mim. Eu queria dizer alguma coisa (“qualquer coisa”) às crianças mas mantive-me com a minha estratégia e permanci silencioso.

Na quarta tarde que passei no JI, parei no monte de areia do recreio, mesmo por trás de um grupo de 5 crianças que estavam a escavar a areia com pás. Estavam a fazer “trabalho de construção” com dois patrões e três trabalhadores (4 rapazes e 1 rapariga). A construção envolvia dois dos rapazes a escavarem um buraco na areia e um outro a enchê-lo de água, enquanto o quarto rapaz (o “controlador da barragem”) cravava, tirava, voltava a cravar a sua pá em vários pontos do buraco para criar uma barragem. Ele faziam isto sob as ordens das raparigas-patrões. Observei este jogo complexo para cima de 40m. Depois, os primeiros dois rapazes e pouco depois os restantes dois, cravaram as suas pás na areia e correram para dentro da escola com os “patrões” atrás deles. Suspeitei que não planeassem voltar e que o projecto de construção fora abandonado.
Sentia-me inquieto e ponderava a minha próxima deslocação quando reparei na Sue. Ela estava parada, sozinha, perto do monte de areia, a cerca de um metro de distância e, definitivamente, estava a observar-me. Sorri-lhe e ela sorriu-me, mas depois, para meu espanto, ela correu para perto da caixa de areia e ficou a olhar um grupo de outras meninas. Depois, ouvi uma agitação perto das barras para trepar. Olhei para lá e vi que o Peter tinha tirado (pelo menos, Daniel protestava), o camião do Daniel. Reparei que uma professora tinha chegado para resolver a disputa. Quando voltei a olhar para a caixa de areia, a Sue tinha-se ido embora.
Comecei a levantar-me para me deslocar para dentro da escola, mas depois ouvi alguém dizer “O que t’as a fazer?”. Sue tinha-se aproximado por trás e estava perto de mim no monte de areia.
“Só a olhar” – disse.
“P’ra quê?” – perguntou ela.
“Porque gosto”
Depois a Sue perguntou-me o meu nome e eu disse (e esto veio a revelar-se ser importante) “Eu sou o Bill e tu és a Sue”.
Sue recuou dois passos e perguntou “Como é que sabes o meu nome?”
Fiz qualquer coisa que os adultos raramente fazem quando falam com crianças pequenas, especialmente se pensam que as crianças não perceberão a resposta. Disse a verdade sem tentar simplificar.
“Ouvi a Laura e outros meninos a chamarem-te Sue”.
“Mas como é que tu sabes o meu nome?” – perguntou ela de novo.
“Bramindo das minhas armas”, repeti que tinha ouvido as outras crianças chamarem-lhe Sue. Sue olhou-me perplexa, deu meia-volta e correu para dentro da escola.
Ali estava eu, tendo passado vários dias a tentar tornar-me uma das crianças. Finalmente, uma criança falou comigo e eu afugentei-a! Mas depois, a Sue, apareceu vinda da escola e voltou a correr para junto de mim com o Jonathan ao lado dela.
Quando me alcançaram, Jonathan perguntou “Qual é o meu nome?”
“Jonathan” – respondi.
“Como é que tu sabes o meu nome?”
“Ouvi o Peter [um dos seus parceiros mais frequente] e algumas das outras crianças chamaram-te Jonathan” – disse eu.
“Estão a ver, eu bem disse que ele sabia magia” disse Sue.
“Não, não... calma aí!” – disse cautelosamente Jonathan. “Quem é aquele menino ali?”  - perguntou ele, apontando para Lanny e Frank.
“Lanny e Frank” – respondi eu cheio de confiança. Eu conhecia todas as crianças.
Jonathan olhou em volta, tentando encontrar um menino que fosse difícil e depois perguntou-me o nome de mais três. Identifiquei-os a todos facilmente.
Com um sorriso malandro, Jonathan perguntou-me então: “Ok, qual é o nome da minha irmã mais nova?”
Joanathan pensou que me tinha “apanhado”, mas na verdade eu sabia o nome da sua irmã. A secretaria da escola tinha-me fornecido uma lista com os nomes das crianças, dos seus pais e irmãos. Eu tinha memorizado muita desta informação e, felizmente para mim, lembrava-me do nome da irmã do Jonathan.
“Alicia!” – declarei eu. Sentia-me muito bem, agora.
Jonathan estava muito impressionado. Olhou para a Sue e disse: “Eh pá, eu não acredito!”. Depois, desatou a correr para contar ao Peter e ao Daniel.
Entretanto, a Sue passou-me uma pá
“Queres escavar?”
“Claro”, disse eu pegando na pá.
Escavámos a areia para dentro dos baldes e depressa se nos juntou o Jonathan, Peter e Daniel. Peter e Daniel perguntaram-me se eu sabia os seus nomes. Claro que eu sabia e disse-lhos. Depois, começamos todos a cavar e as crianças organizaram um outro projecto de construção em que eu fui designado para o papel de trabalhador. Christopher e Antoinette também se juntaram a nós e o jogo continou cerca de mais 20 minutos até que uma das professoras anunciou que era a “hora de arrumar”, pelo que nós, relutantemente, largámos as nossas pás e fomos para dentro.

Nos vários dias que se seguiram após esta passagem para “o lado de lá”, as crianças começaram a reagir à minha presença (perguntavam quem eu era) e convidaram-me para entrar no seu jogo. Apesar de eu ser capaz de observar e, em muitos casos, de participar até certo ponto nas brincadeiras das crianças, a minha aceitação foi gradual. Durante o primeiro mês, as crianças estavam curiosas acerca de mim e do porquê eu estar por ali todos os dias. Fizeram-me muitas perguntas que seguiram a sequência geral: “Quem és tu?”, “És professor?”, “Vens jogar um jogo connosco?” [i.é. esta é a pergunta que é feita às crianças quando as querem envolver em experiências de investigação que ocorrem rotineiramente nesta escola laboratório], “És pai?” e “Tens algum irmão ou irmã?”. O padrão aqui é importante. As crianças deslocaram-se das questões gerais acerca das características adultas para as últimas questões acerca dos irmãos, que é uma das que as crianças tipicamente perguntam umas às outras.
Na altura deste primeiro estudo, a minha resposta a todas as perguntas acerca da informação adulta foram “não” porque eu não era professor, investigador experimental ou pai. Mas eu tinha irmãos – sete! Ter tantos irmãos e irmãs aguçou a curiosidade das crianças acerca de mim. Todavia, hesitavam em acreditar-me e alguns perguntaram “A sério?”. Depois, para sua delícia nomeei-os a todos. Pertencer a uma grande família ajudou a solidificar a minha aceitação e posição no grupo.
Não pretendo declarar que as crianças rapidamente me aceitaram como uma delas. Nunca em todos estes meus muitos anos nos JI fui alguma vez totalmente visto como uma das crianças. Até mesmo em Itália onde fui visto como um adulto incompetente por causa do meu conhecimento limitado de Italiano, eu continuava a ser um adulto. Sou muito grande para ser uma criança. Assim, a alcunha que surgiu perto do fim do primeiro mês em Berkeley na cena que acima descrevi é importante. Eu tornei-me aceite como um adulto diferente ou atípico – uma espécie de criança grande.
Este estatuto como um adulto atípico ou criança grande foi demonstrado de várias maneiras no meu primeiro projecto. Primeiro, fui autorizado a entrar em actividades de pares que se desenrolavam com pouca ou sem disrupção. Podia deslocar-me para dentro da “casinha”, monte de areia e até estrutura para trepar sem muitos comentários para além de uns poucos sorrisos e alguma galhofa. Segundo, eu tinha pouca ou nenhuma autoridade quando comparado com outros adultos. Dado o meu desejo para me tornar parte da cultura das crianças, abstive-me de controlar o seu comportamento. Contudo, naquelas poucas ocasiões em que temi pela sua segurança física, os meus avisos “Tenham cuidado” foram sempre rebatidos com “Tu não és o professor!” ou “Tu não tens nada que mandar em nós!”. Finalmente, ao longo do ano escolar, as crianças pediram-me para tomar parte nas actividades de pares mais formais. Nos aniversários, por exemplo, as crianças insistiam para que me sentasse com elas (num círculo) em vez de na periferia com os professores e pais. Também, muitas das crianças pediram às suas mães que escrevessem o meu nome a par do dos seus colegas em bolachas, guloseimas e bonecadas que eram trazidos para a escola em dias especiais.
Um segmento dos dados de Berkeley gravado em video, capta a minha aceitação pelas crianças e também mostra as diferentes percepções que ganhei acerca da sua cultura de pares na pesquisa etnográfica.

Bologna, Itália (1983-1986)

Eu estava apreensivo com a entrada no terreno no primeiro JI italiano que estudei, devido às limitadas competências em conversação italiana que eu tinha naquela altura. À medida que isso se revelava, esta apreensão ia desaparecendo. Com a ajuda de colegas italianos acedi a um JI e apresentei os objectivos da minha pesquisa (basicamente, o que era ser criança na escola) aos professores. Em Itália, o JI é financiado federalmente e mais de 96% de italianos dos 3-5 anos o frequentam antes de entrarem para o primeiro grau da escola básica aos 6 anos de idade. A escola da qual eu me tornei parte tinha 5 professores e 35 crianças, num grupo de idades mistas dos 3 aos 5 anos.
No meu primeiro dia no JI as professoras apresentaram-me às crianças como alguém dos Estados Unidos que viria à escola para estar com eles ao longo do ano. Confiando na estratégia “reactiva” de entrada no terreno que tinha usado primeiramente em Berkeley, entrei para as áreas de jogo, sentei-me e esperei que as crianaçs reagissem à minha presença. Não demorou muito tempo. Eles começaram a fazer-me perguntas, conduziram-me para dentro das suas actividades de jogo e, ao longo do tempo, definiram-me como um adulto atípico.
Para minha surpresa, a minha aceitação pelas crianças italianas foi muito mais fácil e rápida do que tinha sido com as crianças americanas. Para as crianças italianas (bimbi) quanto mais eu falava no meu italiano desarticulado mais eu era invulgar, engraçado e fascinante. Eu não era apenas um adulto atípico mas também um adulto incompetente – não apenas uma criança grande mas uma espécie criança grande idiota.
A primeira coisa em que repararam foi na minha pronúncia mas rapidamente se habituaram a ele e perceberam que eu usava frequentemente as palavras erradas (má gramática) e, mais ainda, que faziam pouco sentido (má semântica). Ao princípio elas adoraram gozar e corrigir a minha pronúncia. Depressa se tornaram pequenos professores, corrijindo a minha pronúncia e gramática e até repetindo e ajustando o seu próprio discurso, quando eu não os conseguia compreender. Às vezes, eles act out palavras e frequentemente consultadas/consideradas em pequenos grupos, muitas vezes gozavam chamando outros “Adivinha o que o Bill disse agora!”. Não tardou que nos dessemos bem e que a minha confiança em comunicar com as crianças comecasse a crescer. Lembro-me particularmente de um pequeno triunfo.
Eu estava sentado no chão com 2 rapazes (Felice e Roberto) que faziam corridas de carrinhos às voltas em círculo. Felice estava a falar acerca de uma corrida italiana de carros de corrida, enquanto brincávamos mas como ele falava muito depressa eu só conseguia perceber parte do que ele estava a dizer. Contudo, a dada altura eu ouvi claramente a frase “Lui é morto” e eu sabia que isso significava “Ele morreu!”. Percebi que Felice devia estar a contar um acidente trágico de algum acontecimento passado num “grande prémio”. Nesse momento, lembrei-me e usei uma frase idiomática que tinha aprendido no meu primeiro curso de italiano: “Che peccato!” (Que pena!)
Olhando espantado, Felice disse: “Bill! Bill! Ha ragione! Bravo Bill!” (Bill! Bill, Está certo! Boa Bill!”)
“Bravo Bill” – replicou Roberto.
Depois Felice gritou para outras crianças na escola. Algumas das crianças vieram e ouviram com muita atenção o Felice a repetir toda a história do trágico acidente e depois ele disse: “E Bill disse, ‘Che peccato!”. O pequeno grupo animou-se e alguns até bateram palmas com estas novidades. De modo nenhum embaraçado com toda esta atenção eu sentia-me bem – como um do grupo! Eu já não era um adulto a tentar aprender acerca das culturas das crianças, mas eu estava lá dentro, eu estava a fazê-lo, eu era parte da acção.

As coisas já não corriam tão bem com os professores. De facto, confusões e interrupções comunicativas foram frequentes durante os meus primeiros meses na escola. Houve uma série de razões para estes problemas. Primeiro, os professores e eu estavamos auto-conscientes acerca destes problemas de linguagem enquanto que eu me sentia mais à vontade com as crianças. Para os professores era porque ele apenas conheciam uma linguagem e eu era porque o meu italiano era muito pobre. Segundo, nós tentávamos conversar sobre um assunto em vez de tópicos abstractos (como a política de educação pré-ecolar nos EUA) quando comparado com as conversas acera do aqui e agora que eu tinha com as crianças durante as brincadeiras. Terceiro, os professores não eram tão bons a ajustar o seu discurso como o eram as crianças. Eles começavam a falar devagar e eram muito cuidadosos para evitar construções difíceis e expressões idiomáticas. Contudo, uma vez a conversa a “rolar”, as coisas intensificavam-se, emergiam frases complicadas e eu ficava confuso. Quando eu expressava tal confusão, a professora ficava frequentemente um pouco atrapalhada e insistia para que recomeçassemos e, como resultado, raramente íamos muito longe nestas primeiras tentativas.
Dadas as nossas dificuldades, as professoras estavam surpreendidas com o sucesso aparente da minha comunicação com as crianças. Em várias ocasiões, vi um ou outro dos professores chamar as crianças à parte para lhes perguntar acerca do que tínhamos estado a conversar. As crianças não tinham problemas em dizer aos professores o que elas e eu tinhamos dito. Estas explicações incitaram os professores a perguntarem-me porque comunicava eu tão bem com as crianças. Eu disse-lhes que as crianças e eu falavamos de coisas mais simples e directas, relacionadas com as brincadeiras das crianças.
Embora um pouco perplexas, as professoras aceitaram esta explicação e ao longo do tempo, tal como o meu italiano melhorava assim acontecia com as minhas comunicações com os professores.
Todavia, o mais importante é que a descoberta das crianças acerca dos meus problemas comunicativos com os professores foi um aspecto especial da nossa relação. Eles podiam conversar comigo e eu com elas com pouca dificuldade, mas era visível para elas que isso não era verdade no que se referia à minha comunicação com os professores. De facto, alguns pais disseram-me que os seus fihos ou filhas vinham para casa dizer “Há este americano, Bill, na escola e nós conseguimos conversar com ele mas a professora não consegue!”. Em suma, as crianças viam a minha relação com elas como uma quebra parcial do controlo dos professores.
A natureza da especial minha relação com as crianças foi lindamente captada num projecto de escola. Logo no início do ano, cada criança na escola desenhou um pequeno auto-retrato em pedaços de papel separados. Estes retratos individuais foram depois colocados num grande painel de grupo com o título “As caras das Duas Torres todas juntas). O grande painel foi exibido na parede da grande sala de reuniões da escola. Duas Torres era o nome da escola e o painel expressava a natureza comunal do curriculum da escola.

Mais tarde os professores pediram às crianças que falassem um pouco acerca de si próprias. Os professores gravaram as suas respostas, transcreveram-nas e colocaram-nas num portfolio para cada criança a par de fotografias na sala e outros materiais produzidos ao longo do ano. Ao descreverem-se, a maioria das crianças referiu-se às características físicas, disseram que tinham irmãos e irmãs, animais de estimação, o que gostavam de fazer, etc, etc. Contudo, uma menina, Carla, apenas respondeu: “Eu tinha uma bolsa”. Apesar da insistência dos professores e dos colegas, a Carla não disse mais nada. Presumi que a perda da bolsa naquela altura tinha sido terrível para ela.
Depois das crianças terem terminado os seus auto-retratos, as crianças mais velhas desenharam retratos dos adultos. O grupo incluiu os professores, a dade (a senhora que trabalha na escola servindo as refeições e fazendo a limpeza, mas também , por vezes, agindo como uma espécie de avós para as crianças) e eu. Os desenhos foram também afixados num grande painel do grupo e exibidos ao lado do retrato de grupo das crianças com o título: “Os adultos das Duas Torres todos juntos”. Não é difícil reconhecer-me neste grupo.

Depois de todas as crianças terem dito alguma coisa sobre si próprias, tiveram a oportunidade de, numa reunião de grupo, fazer comentários e descrições dos adultos.
As crianças descreveram as características físicas dos professores e dade e também fizeram alguns comentários acerca das suas personalidades. As crianças disseram coisas do estilo os professores são simpáticos mas também um pouco severos e levantam a voz quando as crianças se portam mal. Chegavamos agora ao ponto principal da sua narrativa destes desenhos e descrições. Aqui está o que as crianças disseram acerca de mim:

“Bill é alto e jovem. Tem cabelo preto, olhos castanhos e usa óculos e ele tem barba. Vem sempre à escola e brinca com os meninos, é bom. Bill é americano e não italiano, ele percebe a língua. Com os meninos ele fala italiano muito bem”

A descrição das crianças retrata muito bem as suas percepções e sentimentos acerca de mim. Aos seus olhos eu sou grande e jovem (enquanto que na realidade a minha altura está abaixo da média masculina americana) e eu sou bom porque venho sempre à escola e brinco com elas. Neste sentido, eu sou visto como um amigo. Além disso, a relação é especial até porque apesar de ser ameircano e não italiano percebo a linguagem e com eles eu falo a linguagem muito bem.
Um exemplo de uma gravação de video capta como é que eu entrava nas brincadeiras das crianças e como é que elas se ajustavam à minha presença e até me incorporavam na brincadeira.

Indianapolis Head Start (1989-1990)
Indianapolis é a minha terra natal e quando eu me encontrei com o director do Centro Head Start e os professores com quem ia trabalhar, descobri que partilhavamos muitas experiências por termos crescido naquela cidade. Muito rapidamente me aceitaram no Centro. Contudo, quando lhe falei dos meus planos para visitar o Centro duas vezes por semana ao longo de todo o ano para aprender acerca das interacções e da cultura de pares das crianças, uma professora ficou desconfiada: “Para que quer fazer isso?”, perguntou ela. Ela estava convencida de que em breve eu estaria aborrecido ou muito rapidamente descobriria o que precisava de saber. Mas depois que mantive a minha palavra durante três semanas, os professores começaram a aguardar as minhas visitas e estabelecemos uma boa relação.
As coisas também corriam bem com as crianças que depressa me puxaram para as suas actividades de brincar. Contudo, a minha experiência inicial no Centro Head Start foi, de certa maniera, completamente inesperada para mim. O que foi diferente no estudo do Centro Head Start era que eu era um homem branco num mundo maioritário de mulheres e crianças negras. Pela primeira vez na minha vida ia permanecer um tempo considerável num contexto em que eu era a minoria em tudo, excepto um dos professores e pessoal do Centro, e a esmagadora maioria das crianças eram Afro-americanas. Apesar de estar muito consciente deste facto, as crianças não pareciam preocupadas. Nas primeiras duas semanas várias crianças me perguntaram se eu era o pai de Brandon (um rapaz latino). Eu disse que não e que estava na escola para estar e brincar com eles. Passados cerca de dois meses de pesquisa, uma menina, Tamera, veio ter comigo e disse: “Bill, tu és branco!”. Sem saber exactamente o que dizer, respondi “Yeah, sou!”. E foi tudo.
Durante a terceira semana na escola aconteceu algo importante a respeito da minha aceitação e estatuto de participação na escola, tanto para as crianças como para os professores. O Centro Head Start estava localizado numa antiga escola primária e, como na maioria dos JI, não havia casas-de-banho para as crianças nas salas. As crianças do JI precisavam de ir à casa-de-banho frequentemente e eram muito pequenas para para lhes ser permitido deslocarem-se sozinhas para as casa-de-banho que ficavam fora da sala. Portanto, uma das profesoras tinha de levar as crianças em grupo para as casa-de-banho, duas vezes cada sessão. Eu ia também nessas “viagens” e observava a professora a alinhar as crianças ao longo da parede exterior das casa-de-banho. Depois, ela enviaria três ou quatro rapazes para a casa-de-banho dos rapazes e o mesmo numero de raparigas para a casa-de-banho das raparigas. Esperava alguns minutos para entrar em cada uma das casa-de-banho e apressar as crianças e depois mandava o próximo grupo até que todas as crianças tivessem a sua vez. Depois, voltávamos para a sala com a professora a lembrar às crianças para irem em fila, caminharem devagar e não fazerem barulho para não perturbarem as outras classes.
Devo dizer que não era uma tarefa agradável para os professores. Contudo, fiquei ainda mais surpreso quando um dia, no grupo da manhã uma das professoras me pediu para levar as crianças à casa-de-banho. O pedido pareceu-me perfeitmente razoável e além do mais não se tratava de uma tarefa difícil. Se eu as tinha acompanhado quando os professores levavam as crianças, porque é que eu próprio não as podia levar lá?
O problema é que eu não queria ser visto pelas crianças como uma figura de autoridade e tinha falado com os professores acerca deste aspecto da minha pesquisa. Mas era evidente que eles não tinham pensado que esta pequena tarefa me iria causar problemas ou simplesmente eles não estabeleceram qualquer relação quando me pediram este favor. Decidi que o melhor era concordar em ajudar e esperar que isso não fosse um desafio muito grande à minha relação como um adulto atípico com as crianças.
As coisas começaram bem. Reparei em alguns sorrisos nas caras das crianças quando a professora disse que eu os levaria. Quando saíamos da sala, foi-lhes recomendado que se portassem bem. No patamar e ao descer as escadas elas eram como pequenos anjos, não falavam nem correram, e até a fila estava perfeitamente direita. Também estiveram ordeiramente quando os alinhei contra o muro (os rapazes perto da casa-de-banho dos rapazes e as raparigas perto da das raparigas).
Mandei primeiro quatro rapazes (Charles, Luke, Joseph e Antwaan) em fila para a casa-de-banho e mandei também quatro raparigas (Cymira, Tasha, Michelle e Lamecca). Passados poucos minutos ouvi muito barulho na casa-de-banho dos rapazes.
“O que é que eles estão a fazer lá dentro?”, perguntou Jeremiah. Esta era a mesma pergunta que eu me fazia. Quando fui lá para perceber o que se passava, dei imediatamente conta que estava metido em trabalhos. Joseph tinha ensopado várias toalhas de papel e estava a atirá-las para os outros três rapazes. Antwaan estava junto do lavatório com a água fria a correr no máximo enquanto, com a sua mão por baixo, a atirava borrifando água pelo chão. Entretanto, Charles e Luke riam-se alto, posicionados num ângulo acima dos urinóis tentanto fazer chi-chi para cima do esguicho um do outro nos urinóis mais próximos.
“Ei, vocês aí”, disse eu. “Parem com isso e vão lá para fora”.
“Tu não podes mandar em nós”, disse Charles que pelo menos estava a fazer chi-chi no seu urinol.
“Yeah, ele tem razão”, acrescentou Antwaan. “Tu não és professor”.
Agora ouvia muito barulho lá fora, e corri para lá. Todas as crianças queriam ir à casa-de-banho e perguntavam-me quando é que podiam ir. Brandon era o mais insistente, gemendo “Eu quero fazer chi-chi!”. Eu próprio também queria ir mas essa era a última das minhas preocupações. Voltei para junto dos rapazes e percebi que tentar ser severo não ia ajudar. Charles e Luke tinham-se juntado a Joseph atirando toalhas de papel, uma das quais me acertou atrás da cabeça quando impedi Antwaan de atirar mais água, fechando a torneira.
Antes que os rapazes me pudessem desafiar disse: “Eu não sou professor, mas a turma da Sra. Green está quase a vir aí. Se vocês não vão lá para fora, vamos ficar todos metidos num sarilho!”
“Yeah, Bill, está certo!”, disse Charles. “É melhor irmos lá para fora!”. Os outros rapazes concordaram e eu rapidamente encaminhei os restantes rapazes para a casa-de-banho, incluindo Brandon que correu o mais rápido que conseguiu - ainda bem que não molhou as suas calças.
Agora, pela primeira vez, eu dava-me conta que as primeiras quatro meninas ainda não tinham voltado e ouvia-se muito barulho vindo da casa de banho das meninas. Espreitei mas Tasha gritou “Os rapazes não podem!”. As professores não tinham este problema quando entravam na casa de banho dos rapazes para os apressarem sem preocupações. Decidi aceitar o aviso de Tasha, mas agora eu já estava preparado:
“Acho que a turma da Sra. Green já está a vir”, disse eu alto.
“Uh-oh” – ouvi Michelle a exclamar.
“Yeah, vamos”, disse Cymira. E logo depois, as quatro meninas saíram e o resto das meninas entraram.
O segundo turno de crianças “engonhou” um pouco, mas apressaram-se a dar atenção aos meus avisos sobre a sala da Sra. Green. Pouco depois, todas as crianças já tinham acabado e estavam alinhadas e prontas para partir. Várias crianças sorriam e Charles disse “É fixe vir à casa-de-banho com o Bill!”. Começamos a regressar à sala e as crianças portaram-se bem, tal como o tinham feito quando descemos.
Já na sala, a Sra. Jones disse “Vocês demoraram um bocado, espero que não tenham dado problems ao Bill!”
“Não demos!”, replicou o Carles, olhando para mim com um sorriso.
“Nós gostamos muito de ir com o Bill!”, acrescentou Tasha.
Senti-me seguro. Eu tinha arrumado todas as toalhas de papel mas o chão da casa-de-banho estava bem molhado. Contudo, ele estaria provalvelmente seco quando a sala da Sra. Green lá chegasse.
Alguns dias depois, o sucedido desaguou na turma da tarde, a propósito das minha responsabilidades, e fui solicitado para me encarregar do momento da casa-de-banho, também nesta turma. As crianças deram-me que fazer da primeira vez, mas agora eu já estava melhor preparado. Na verdade, esse papel colocou-me mais próximo das crianças uma vez que elas sabiam que podiam sempre brincar um pouco nestas deslocações à casa-de-banho e me podiam causar dificuldades. Mais ainda, elas tinham percebido que havia um limite para as suas brincadeiras “escondidas/não permitidas”. Tal como no caso das crianças italianas, nós tinhamos certas experiências que partilhavamos fora do controlo dos professores. Assim, o meu estatuto como um adulto espeicla e divertido foi consolidado.

Um dos videos ilustra algumas das minhas interacções com as crianças do Centro Head Start. Implica vários rapazes a transformarem a área da casinha num barbeiro e a cortarem-me o cabelo.

Modena, Itália (1996-2001)

Em Modena, Itália, levei a cabo um estudo acerca da transição das crianças do JI para a escola primária com a minha colega italiana Luisa Molinari. Prosseguimos o nosso estudo através de observações e entrevistas a todas as crianças de 5 anos da escola primária. O foco principal do estudo foi nas crianças, nos últimos cinco meses no JI e nos seus primeiros quatro meses no primeiro ano.
Os meus primeiros dias no JI de Modena foram um novo desafio para mim. Pela primeira vez eu estava num JI em que, na verdade, eu é que era o verdadeiro noviço. Nas pesquisas que realizei no passado tinha entrado em escolas desde o início ao fim do ano e pelo menos algumas (se não todas) as crianças eram, tal como eu, novos no contexto. Além do mais, nestas circunstâncias, eu não só entrava no grupo a meio do ano escolar como quase todas as crianças e professores já tinham estado juntos dois anos e meio. Este facto duplicava a minha “estranheza” e deixou muitas das crianças e adultos curiosos acerca de mim durante os primeiros dias na escola.
Tal como tinha feito em pesquisas no passado eu deslocava-me para as áreas do brincar, sentava-me e deixava que as crianças reagissem a mim. Várias das crianças mais velhas e mais activas no grupo (Luciano, Elisa e Marina) me disseram, frequentemente, o que se estava a passar e geralmente tomaram conta de mim durantes as primeiras semanas.
Eles escoltavam-me para as aulas de múscia e inglês e eu ouvi-os fazer referências à minha presença às crianças de 5 e de 4 anos das outras salas na escola e relatando que “Bill faz parte da nossa sala!”
Apesar das crianças gostarem da ideia de me terem na sua sala, como foi o caso em Bologna, elas gozaram com a minha pronúncia e má gramática, declarando várias vezes que “eles não percebem nada” acerca do que eu estava a dizer. Muitas crianças, também me deram, às vezes, socos na barriga, gozando com a minha “pança grande”. Após eu ter estado a observar na escola durante três semanas, um dia, eu estava sentado numa área em que uma rapariga, Carlota, que frequentemente me provocava, e várias outras meninas estavam a brincar com algumas bonecas. De repente, a Carlota levantou a minha camisola, meteu lá dentro a boneca e berrou para toda a gente “Olhem, Bill está para ter bébé!”. Depois, tirou a boneca, sob as gargalhadas ruidosas das outras crianças.
As crianças, muito rapidamente rejeitavam algumas das minhas ideias ou afirmações. Uma vez, quando estavamos a brincar no recreio com vários rapazes, reparei que Dario, Renato e Valério reuniram alguns paus e colocaram-nos no chão debaixo das barras de trepar. Protegeram os seus paus dos outros e houve uma discussão acesa. Por isso, eu sugeri que os Índios começassem o fogo friccionando os paus juntos. Renato e Valerio decicidram tentar isso mas Dario disse (em muitas palavras) “Bill “maluco”, ele não sabe o que está pr’ai a dizer e isso não vai funcionar”. Os outros rapidamente concordaram e, ao invés, usaram os paus para remexer nas folhas.
Por outro lado, as crianças percebeream que eu como adulto tinha certas competências que lhes eram úteis. Uma vez, Renato, Angelo, Mario e Dario estavam a brincar com plástico, materiais de construção de encaixe. Elas passaram-me algum dos materiais que tinham encaixado e pediram-me que os separasse. Eu aceitei esta tarefa de boa vontade, mas depressa percebi que as peças estavam encaixadas muito mais apertadas do que eu julgava. Com feito, eu primeiro puxei com toda a força nas sem efeito. Uma das professoras, Giovanna, veio até mim, rindo-se, e disse que as crianças tinham encontrado uma utilidade prática para mim. Eu percebia agora que muitas das peças tinham sido apertadas há muito tempo. Quando eu estava mesmo para desistir, tentei tirar uma peça na extremidade da mesa com a outra suspensa sobre a extremidade. Puxei com força e as peças soltaram-se. Angelo e Renato gritaram: “Bravo Bill!” e rapidamente me deram mais peças. Eu separei facilmente as primeiras duas com o meu método inventivo, mas depois voltei a ter problemas porque várias outras peças nem sequer se mexeram. Entretanto, os rapazes começaram a copiar o meu método com algum sucesso, por isso eu fiquei por ali. Depois, reparei que Angelo e Mario estavam a recolher todas as peças separadas e a pô-las dentro da caixa. Eles disseram a várias outras crianças que o Bill as tinha separado mas que ele não iam brincar com elas. Fiquei admirado com isso. Estariam eles com receio de que as peças voltassem a ficar encaixadas de novo? De qualquer modo continuei a trabalhar na aborrecida tarefa até que, para meu alívio, ouvi Giovanna a dizer que era a hora de arrumar a sala.
Uma manhã, depois de estar a observar a escola há cerca de 5 semanas, Giovanna leu um capítulo do Feiticeiro de Oz às crianças. Depois de cerca de dez minutos de leitura e discussão, Giovanna foi chamada para ir atender o telefone, por isso eu deu-me o livro, sugerindo que que continuasse a ler a história. Certas de que isso seria uma tarefa difícil para mim, as crianças gritaram e bateram palmas, pensando que era uma grande ideia. Eu, tive imediatamente um problema ao pronunciar a palavra “espanatalho” que em italiano é “spaventapasseri”. As crianças gozaram e apuparam-me no meu “tropeço” nesta e noutras palavras. Algumas crianças até cairam das suas cadeiras a fazer de conta que estavam histéricas com o meu apuro. A minha tarefa tornou-se ainda mais difícil uma vez que parecia haver “espantalhos” em cada uma das outras frases. Para meu alívio, Giovanna voltou e, quando perguntou como é que eu me tinha saído, as crianças riram-se e disseram que eu não tinha lido bem. Sandra ginchou “Nós não percebemos nada!”. Então, Giovanna pegou no livro mas as crianças gritaram: “Não, nós queremos que o Bill leia mais!”. Pegando de novo no livro, lutei contra mais uma página entre risotas das crianças e devolvendo o livro a Giovanna disse “Já chega, por agora!”
Há dois aspectos da resposta das crianças ao meu problema com a linguagem que são diferentes das minhas primeiras experiências em Bologna. Primeiro em Bologna eu observei um grande grupo de idades mistas onde havia uma grande diversidade de competências de literacia das crianças. Apesar das crianças bolognesas também terem sido iniciadas na leitura e na escrita, isso não era parte central do curriculo. Neste grupo de crianças de 5 anos em Modena, as aulas e actividades relacionadas com a escirta e a leitura eram agora ocorrências quotidianas nestes últimos meses do seu ano final no JI. Apesar delas se rirem dos meus erros, elas perceberam que eu conseguia ler e, até certo ponto, identificaram-se com os meus problemas. Segundo, as crianças em Modena estavam também a estudar inglês e percebiam que eu era competente num lingua estrangeira que era muito difícil para elas. Em suma, era-lhes reiterado que este novo adulto no seu meio partilhava algumas das suas experiências e desafios.
Já no final do ano, em Julho, no JI de Modena tinha-me tornado muito amigo das crianças, dos professores e de muitos pais. Era muito agradável ser capaz de seguir as crianças para a escola primária no Outono. 18 das 21 crianças iniciais (3 crianças foram para uma escola primária diferente) foram divididas em quatro grupos do 1º ano. Eu observei em cada dia cada um dos quatro grupos e, frequentemente, passava a sexta-feira a visitar os professores do JI com o seu novo grupo de crianças de 3 anos. No início, na escola primária, as crianças do nosso JI inicial tentaram reclamar-me dizendo “Bill pertence-nos!”. Contudo, após algumas semanas eu já conhecia todas as outras crianças e, na altura em que me vim embora, em Dezembro, as crianças e os professores viam-me como parte do 1º ano. Eu permaneci membro deste grupo e dos seus professores ao longo da escola primária.
Todavia, houve um incidente logo no início da minha estadia no 1º ano que representa uma memória especial para mim e demonstra a minha grande amizade com as crianças que vieram do JI. Estava-se em meados de Outubro de 1996 e eu tinha estado com as crianças do primeiro ano, cerca de um mês. Eu estava no 1º ano, grupo B. A professora Letizia, tinha deslocado algumas carteiras porque as crianças do 1º A, vinham visitar-me à sala. Eu estava a ajudar quando senti que o chão começou a tremer. Era um terramoto.
“Temos que levar as crianças lá para fora”, disse Letizia à medida que saía rapidamente da sala.
Presumi que tinha que tomar conta das várias crianças na sala enquanto ela ia ao átrio, casa-de-banho ou ao 1º A onde havia alguém de visita. Tudo isto aconteceu numa fracção de segundos e o chão não tremeu senão vários segundos mas parecia que se tinha transformado como se estivessemos em cima de gelatina. Eu agarrei nas 5 crianças que estavam na sala e levei-as para fora onde vi grupos de professores e estudantes junto do portão principal. Tinham-se agrupado por classes e grupos dentro das classes. Algumas das crianças mais velhas estavam assustadas e choravam, mas o tremor tinha parado. Olhando para os edifícios mais altos, à volta da escola, podia ver que não havia danos visíveis.
Enquanto levava as minhas crianças com os resto do 1º A, reparei em várias crianças do 1º ano a irem para debaixo de uma área encoberta onde estavam estacionadas bicicletas para ficarem abrigadas dos chuviscos. As professoras depressa os afugentaram – o objectivo era que ficassem longe de qualquer coisa que pudesse cair-lhes em cima – e voltaram para o grupo. Depois, um dos rapazes, Mario, do 1º A e também do JI onde eu tinha trabalhado, voltou a correr para a escola. Comecei a ir atrás dele, mas um dos seus professores impediu-me e conduziu-o de volta ao seu grupo.
“Mas eu preciso da caneta que eu gosto mais!”, ele protestou.
“Estás louco”, disse o professor. “Tivemos um tremor de terra. Podes ir buscar a caneta depois”
Nesta altura, enquanto o profesor explicava que tinhamos tido um tremor de terra,  várias crianças do JI que estavam no 1º B vieram para junto de mim e agarraram-se aos meus braços e pernas. Passados pucos minutos as coisas acalmaram e os profesores deixaram as crianças circular entre o grupo do 1º ano. Várias crianças que tinham frequentado o JI comigo, desde o 1º A, C e D, vieram a correr para mim e disseram: “Bill, também houve um tremor de terra na tua sala!”
Acabei por ficar com estas crianças até ao final do seu tempo na escola primária, voltando todas as primaveras (excepto uma) para fazer observações entrevistas assim como para trocar correspondência.

Referências
Adler, Patricia and Peter Adler. Peer Power. New Brunswick: N.J.: Rutgers University Press.
Christensen, Pia and Allison James. (2000) (Eds.). Research with Children: Perspectives and Practices. London: Falmer Press.
Corsaro, William A. (1985), Friendship and Peer Culture in the Early Years. Norwood, N.J.: Ablex.
Corsaro, William A. and Luisa Molinari (2000), “Entering and Observing in Children’s Worlds: a Reflection on a Longitudinal Ethnography of Early Education in Italy.” in Research with Children: Perspectives and Practices. ed by Pia Christensen and Allison James, 179-200. London: Falmer Press.
Fine, Gary and K. Sandstorm (1988), Knowing Children: Participant Observation with Minors. Newbury Park, CA: Sage.
Mandell, Nancy (1988), “The Least-Adult Role in Studying Children,” Journal of Contemporary Ethnography, 16:433-467.
Rizzo, Thomas, William A. Corsaro, and J. E. Bates (1992), “Ethnographic Methods and Interpretive Analysis: Expanding the Methodological Options of Psychologists.” Developmental Review, 12:101-123.


[1] No original researcher-created
[2] No original “one-way screened”

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