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O Grupo de Estudos de Educação Infantil e Infâncias (GEIN) atua em pesquisas e na formação acadêmica de professores e gestores no campo da infância deste 1996. Além da pesquisa e da docência na Graduação e no Pós-graduação na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FACED/UFRGS), o GEIN vem desenvolvendo atividades de extensão e assessoria, bem como a publicação de livros e artigos sobre formação de professores de educação infantil, infâncias, processos de aprendizagem, sexualidade e gênero, proposições pedagógicas em espaços educativos, entre outras temáticas. A partir do GEIN e da área de Educação Infantil da FACED-UFRGS criamos a linha de pesquisa, junto ao Programa de Pós-graduação em Educação, Estudos Sobre Infãncias, tendo como objetivo central examinar as infâncias e sua educação na multiplicidade e heterogeneidade de espaços e contextos, explorando e examinando as diferentes versões das infâncias na contemporaneidade, suas propostas educativas, bem como as pedagogias e produções culturais direcionadas às crianças.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Uma discussão geral sobre Etnografia...


Professor William Arnold Corsaro
Department of Sociology
Indiana University, Bloomington
Tradução: Fernanda Müller

Uma discussão geral sobre Etnografia

Minha visão e prática de etnografia têm sido principalmente influenciadas pelo sociólogo Howard Becker (1970) e dois antropólogos – Cliffort Geertz (1973) e Shirley Bric Heath (1983). As influências de Becker e Geertz foram mais abrangentes em termos de conceitos de cultura e no valor em geral do método em ciências sociais. Shirley Heath tem desempenhado uma função de modelo para o verdadeiro fazer em etnografia – mais especialmente nas etnografias de crianças.
Com base em Heath e outros etnógrafos, acredito que a validade das representações abstratas do comportamento humano deve se basear na realidade estabelecida com a observação e a análise disciplinada. A etnografia possibilita uma base de dados empírica, obtida através da imersão do pesquisador nas formas de vida do grupo. Entre as principais vantagens da etnografia, estão: (1) seu poder descritivo; (2) sua habilidade para incorporar aos dados a forma, função e contexto do comportamento de grupos sociais específicos; (3) sua captura de dados (em notas de campo e/ou através de gravação em áudio ou vídeo) para a análise apurada repetida.
A etnografia envolve um número de estratégias ou procedimentos de pesquisa, incluindo:
[slides 2 e 3]
  1. A entrada no campo e aceitação no grupo social
  2. A coleta e a escrita consistente de notas de campo, entrevistas formais e informais e artefatos
  3. A coleta de gravações audiovisuais de eventos acontecidos naturalmente
  4. A coleta e análise de dados comparativos - incluindo casos negativos
  5. A construção de uma descrição detalhada (ou densa) da cultura do grupo estudado e a história natural do processo de pesquisa
  6. A interpretação da descrição densa e geração de uma teoria interpretativa ou bem fundamentada (mais freqüente através do relatório da etnografia em alguns tipos de forma narrativa)
Nesta fala, eu concentrarei primeiramente na entrada no campo e na coleta de dados ou nas primeiras quatro das seis estratégias ou procedimentos no meu trabalho etnográfico sobre as culturas de pares e as transições na vida das crianças pequenas.

Características-chave da etnografia

Antes de dirigir a discussão para o meu próprio uso de métodos etnográficos, quero considerar três características-chave da pesquisa etnográfica: (1) sustentável e comprometida; (2) microscópica e holística; (3) flexível e auto-corretiva.

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Sustentável e comprometida

A pesquisa etnográfica tipicamente envolve um trabalho prolongado no campo, onde o pesquisador tem acesso ao grupo social e conduz uma observação intensiva no ambiente natural por um período de meses ou anos.
De forma a interpretar o que os participantes estudados estão fazendo ou falando, o etnógrafo precisa saber sobre como são os seus cotidianos – o ambiente físico e institucional nos quais eles vivem, suas rotinas, as crenças que guiam as suas ações e a lingüística e outros sistemas simbólicos que medeiam todos estes contextos e atividades. Esta informação é coletada e registrada sistematicamente através de notas de campo, entrevistas formais e informais, documentos ou artefatos e gravações em áudio ou vídeo.
A maioria dos etnógrafos defende um tipo de trabalho de campo, a ‘observação participante’, que é sustentável e comprometida. Aqui o pesquisador não somente observa repetidamente, mas também participa como um membro do grupo. A aproximação mais efetiva ocorre quando o pesquisador toma o entendimento dos sentidos e organização social como tema de pesquisa a partir de uma perspectiva de dentro, aprendendo para se tornar um membro do grupo, documentando e refletindo sobre o processo.

Microscópica e holística

Uma segunda característica da pesquisa etnográfica é que ela é simultaneamente microscópica e holística. Freqüentemente os etnógrafos abordam interpretações mais amplas e abstraem análises do que Geertz (1973) chama de “a direção da familiarização do excessivamente amplo com temas extremamente pequenos”. De modo a assegurar que a generalização feita é válida culturalmente, os etnógrafos devem estar fundamentados na acumulação das especificidades do cotidiano e nas reflexões dos participantes sobre elas. Mas descrever simplesmente o que é visto e ouvido não é suficiente. De forma a atribuir sentido às observações de atividades específicas e comportamentos, deve-se engajar em um processo de interpretação que Geertz chama de “descrição densa”.
Geertz argumenta que nunca se pode entender através de uma descrição de um comportamento apenas real (ou o que ele chama de “descrição superficial”). Para ilustrar, ele se refere à dois meninos que, na linguagem da descrição superficial, estão “contraindo rapidamente os cílios do olho direito”. Seria uma contração muscular? Eles estão piscando, imitando uma piscadela, fingindo uma piscadela, treinando uma piscadela? É impossível afirmar sem entender os contextos múltiplos encapsulados nos quais estes comportamentos ocorrem e os códigos de comunicação socialmente estabelecidos de onde eles derivam. Portanto, é necessário não somente examinar ações microscopicamente, mas contextualizá-las em um senso mais holístico de forma a descrever com sucesso o evento como ele foi entendido pelos próprios atores.

Flexível e auto-corretiva

Uma terceira característica da etnografia é que ela é flexível e auto-corretiva. Diferente da pesquisa positivista (experimental e quase-experimental) com procedimentos estritamente controlados e hipóteses específicas a serem testadas, é a essência da etnografia ser “um método dialético” (ou interativo-adaptativo) no qual “questões iniciais talvez mudem durante o curso da pesquisa”.
Um exemplo dos aspectos metodológicos pode ser visto na minha pesquisa etnográfica inicial nas escolas de educação infantil[1]. Inspirado nas promessas das aproximações construtivistas do desenvolvimento humano (Piaget e Vigotsky), eu iniciei minha pesquisa convicto de que a interação de pares tinha efeitos positivos no desenvolvimento social das crianças.
O construtivismo me projetou para entre as crianças, mas uma vez que eu era parte do mundo das crianças eu comecei a questionar a aproximação que deu ímpeto ao meu trabalho. O construtivismo, especialmente o apresentado pelo trabalho de Piaget, é uma teoria da acomodação individual da criança a um mundo autônomo, embora eu me encontrasse estudando processos coletivos, comuns e culturais. Aos poucos eu comecei a ver que eu não estava simplesmente estudando os efeitos positivos da interação entre pares, mas também eu estava documentando a produção criativa das crianças de e a participação em uma cultura de pares.
Primeiro eu me convenci que as crianças da educação infantil tinham suas próprias culturas de pares quando eu observei suas estratégias para escapar de regras particulares dos adultos que elas viam como arbitrárias.
A auto-correção é também construída nos processos de coleta de dados etnográficos. É freqüentemente impossível para o pesquisador saber de antemão ao trabalho de campo como formular perguntas de entrevista que serão entendidas pelos participantes os quais as normas de comunicação diferem das suas. Mais do que isto, como apresentar sua pesquisa e ele próprio como pesquisador para aqueles estudados, e como ele se posiciona na esfera social de forma a permitir a melhor observação do fenômeno de interesse.
Registrar e analisar erros metodológicos iniciais, julgamentos equivocados, ou o que Charles Briggs (1986) chama de “repertório comunicativo”, que é uma forma útil dos etnógrafos obterem informações para revisarem seus procedimentos de forma a melhor adaptar as demandas de uma situação particular do campo.
A flexibilidade e a natureza auto-corretiva da etnografia se aplica não somente para as questões de pesquisa e para a coleta de dados, mas também para a análise dos dados. Diferente das aproximações positivistas, a análise interpretativa dos dados etnográficos não pode ser totalmente especificada de antemão. Tampouco a análise deve ser vista como simplesmente um primeiro passo da geração de hipóteses dentro de uma estrutura positivista.
A análise interpretativa é geradora de teoria, mas porque o critério de direcionamento é o de validação cultural, as categorias descritivas não são predeterminadas. Ao contrário, elas são derivadas de um processo de divisão, classificação, e avaliação interativa. Isto não significa que o etnógrafo não se responsabiliza pela organização dos dados sem um esquema ou um arcabouço analítico inicial. O que é buscado é um “equilíbrio entre estrutura, guiada pelo problema de pesquisa, e flexibilidade, guiada pelo objetivo de entender o ponto de vista do informante...” (Miller e Sperry, 1987, p. 9).

Pares e cultura de pares

[slide 5]

Nesta apresentação eu discutirei muito os pares e a cultura de pares. Por pares eu entendo a coorte ou grupo de crianças que passam tempo juntas diariamente. Eu destacarei a cultura de pares local produzida e compartilhada por interação face a face.
Eu defino cultura de pares como um conjunto estável de atividades ou rotinas, artefatos, valores e interesses que as crianças produzem e compartilham em interação com pares. Este medalhão feito para a apresentação e a festa anual na Itália é um bom exemplo de cultura de pares.

[slide 6]

Entrada no campo, aceite e coleta de dados nas escolas de educação infantil e do ensino fundamental italianas

Estava apreensivo com minha entrada no campo na primeira escola de educação infantil italiana, devido à minha limitada capacidade de conversação em italiano naquele momento. Esta apreensão teve vida curta. Com a ajuda de colegas italianos consegui entrar numa escola de educação infantil (scuola dell’infanzia) e apresentar minhas metas de pesquisa (de modo geral, como é ser uma criança na escola) às professoras. A escola da qual me tornei parte tinha 5 professoras e 35 crianças, entre 3 e 5 anos.
No meu primeiro dia na escola de educação infantil as professoras me apresentaram às crianças como alguém dos Estados Unidos que vinha à escola para ficar com elas o ano todo. Confiante na estratégia “reativa” de entrada no campo que usara na minha pesquisa prévia nos Estados Unidos, fui até a área de jogo, sentei e esperei que as crianças reagissem à minha presença. Não demorou muito. Elas começaram a me fazer perguntas e a me chamar para as suas brincadeiras, e com o tempo me definiram como um adulto atípico.
Para a minha surpresa, minha aceitação pelas crianças italianas foi muito mais fácil e rápida do que pelas crianças americanas. Para as crianças italianas, assim que eu começava a falar meu italiano limitado, tornava-me esquisito, engraçado e fascinante. Eu era não apenas um adulto atípico, mas também um adulto incompetente – não apenas uma criança grande, mas uma espécie de criança grande boba.
A primeira coisa que notaram foi o meu sotaque, mas se acostumaram rapidamente com ele e então perceberam que eu usava muitas palavras erradas (gramática errada) e que o que eu dizia raramente fazia sentido (semântica errada). Primeiro, adoravam rir e debochar dos meus erros de pronúncia. Entretanto, logo se tornaram pequenas professoras, que não apenas corrigiam meu sotaque e minha gramática, mas repetiam e até reformulavam suas próprias falas quando eu não conseguia entender. Às vezes, até representavam palavras. Costumavam se juntar em pequenos grupos chamando os outros e rindo: “adivinha o que o Bill acabou de dizer!” Rapidamente estávamos indo muito bem e minha confiança em me comunicar com as crianças começou a crescer. Lembro-me especialmente de um pequeno triunfo.
Estava sentado no chão com dois meninos (Felice e Roberto), brincando de corrida de carrinhos em círculos. O Felice estava falando de um corredor italiano enquanto brincávamos, mas ele estava falando tão rápido que apenas conseguia entender parte do que dizia. Em dado momento, contudo, o carrinho bateu na parede e capotou. Ouvi claramente a frase “Lui è morto”, e sabia que significava “ele morreu”. Imaginei que o Felice devia estar contando um acidente trágico em alguma corrida de Fórmula 1. Naquele momento lembrei e usei uma frase particular que aprendera nas minhas primeiras aulas de italiano: “Che peccato!” (“Que pena!”).
Olharam para mim maravilhados, e o Felice disse: “Bill! Bill! Ha ragione! Bravo, Bill!” (“Bill! Bill! Ele tá certo! Parabéns, Bill!). – “Bravo, Bill!”, repetiu o Roberto. Então o Felice chamou outras crianças da escola. Várias vieram e o escutaram atentamente narrar toda a história do trágico acidente e então acrescentar: “Aí o Bill disse: ‘Che peccato!’”. O pequeno grupo me aclamou e alguns até bateram palmas com a notícia. Nada constrangido por tanta atenção, senti-me bem – como um do grupo! Não era mais um adulto tentando aprender a cultura das crianças. Estava dentro dela. Estava conseguindo. Participava!
Entretanto, com as professoras as coisas não iam bem. De fato, as confusões e falhas de comunicação eram freqüentes nos meus primeiros meses na escola. Havia várias razões para isto. Primeiro, as professoras e eu éramos auto-conscientes dos nossos problemas de língua. Para as professoras porque eles sabiam somente uma língua, e para mim porque o meu italiano era limitado. Segundo, tentávamos falar de assuntos relativamente abstratos (como a política de educação da infância nos Estados Unidos) em contraste com as conversas mais triviais que eu tinha com as crianças quando brincávamos. Terceiro, as professoras não eram tão boas quanto as crianças para reformular suas falas. Embora começassem falando devagar e evitassem construções difíceis e expressões idiomáticas, à medida que a conversa avançava, aceleravam, frases complexas surgiam, e eu ficava confuso. Quando mostrava a confusão, elas se sentiam um tanto desnorteadas e insistiam para que recomeçássemos. Assim, raramente conseguíamos ir muito longe nessas primeiras tentativas.
Dadas as nossas dificuldades, as professoras se surpreendiam com meu aparente sucesso comunicativo com as crianças. Várias vezes, eu vi uma ou outra professora chamar as crianças para perguntar do que havíamos falado. As crianças não tinham problemas para repetir às professoras o que cada qual havia dito. Essas explicações levaram as professoras a me perguntar por que conseguia me comunicar tão bem com as crianças. Disse que elas e eu falávamos de coisas mais simples e diretas relacionadas às suas brincadeiras. Embora um pouco perplexos, aceitaram essa explicação e, com o tempo, meu italiano melhorou e também consegui me comunicar com eles. Uma coisa importante, contudo, foi que a descoberta pelas crianças dos meus problemas comunicativos com as professoras se tornou um aspecto especial da nossa relação. Elas podiam falar comigo e eu com elas com pouca dificuldade, mas era claro para elas que este não era o caso com as professoras. De fato, vários pais me contaram que seus filhos ou filhas chegaram em casa dizendo: “Tem aquele americano, o Bill, na escola e a gente consegue falar com ele, e as professoras não!” Ou seja, as crianças viam minha relação com elas como uma falha parcial do controle das professoras.
A natureza de minha relação especial com as crianças surgiu claramente num projeto da escola. No começo do ano letivo todas as crianças da escola haviam desenhado pequenos auto-retratos em folhas de papel. Esses retratos individuais foram então compostos numa imagem de grupo muito maior intitulada: “Insieme delle facce dei bimbi della Del Molino Tamburi” (“todos os rostos das crianças do Molino Tamburi”), que afixaram na parede do salão principal da escola. Molino Tamburi era o nome da escola e essa imagem de conjunto refletia o caráter comunitário do currículo.

[slide 7]

Depois as professoras haviam pedido para que as crianças falassem um pouco de si. Na época, gravaram suas respostas, transcreveram-nas e as colocaram em um portfólio, que deram, no fim do semestre, a cada criança com o retrato da turma e outros materiais produzidos no decorrer do ano. Ao se descreverem, a maior parte das crianças se referiu às características físicas, diziam se tinham irmãos ou irmãs, bichos de estimação, o que gostavam de fazer, e assim por diante. Contudo, uma garota, a Carla, apenas respondeu: “Avevo una borsa” (“Eu tinha uma bolsa”). Apesar da insistência das professoras e de seus colegas, ela não disse mais nada, e presumi que a bolsa perdida era terrivelmente importante para ela.
Depois das crianças acabarem seus auto-retratos, as mais velhas tiveram o privilégio de desenhar retratos dos adultos. Este grupo incluiu as professoras, as dade (mulheres que trabalhavam na escola, servindo comida e fazendo a limpeza, mas também podiam fazer às vezes de avós substitutas para as crianças), as professoras e eu. Essas imagens também foram compostas em um retrato de grupo maior e afixado ao lado do retrato de grupo das crianças com o título: “Insieme degli adulti della Molino Tamburi” (“Os adultos de Molino Tamburi juntos”). Não é difícil me reconhecer neste grupo, mostrado aqui no próximo slide.

[slide 8]

Depois de todas as crianças terem falado de si mesmas, tiveram a oportunidade, numa reunião do grupo, de fazer comentários sobre os adultos e descrevê-los. Elas descreviam as características físicas das professoras e dades e também fizeram alguns comentários sobre as suas personalidades. Disseram que as professoras eram legais, mas também um pouco severas e levantavam a voz quando as crianças se comportavam mal. Agora nós chegamos ao ponto principal da narrativa sobre os desenhos e as descrições. Aqui, o que as crianças disseram a meu respeito:

[slide 9]

“Bill é um homem novo e alto. Tem cabelos negros, olhos marrons, usa óculos e tem barba. Sempre vem à escola e brinca com as crianças, ele é bonzinho. Bill é americano, não é italiano, entende a língua. Com as crianças, fala italiano muito bem.”. Essa descrição das crianças demonstra muito bem suas percepções e sentimentos por mim. Aos seus olhos, era um homem jovem e alto (embora, na realidade, minha altura está um pouco abaixo da média dos homens americanos) e era bonzinho porque sempre ia à escola para brincar com elas. Desse modo, era visto como um amigo. Além disso, essa relação era especial porque embora eu seja americano e não italiano entendia a língua e, com elas, me comunicava muito bem.
Apesar dessas palavras gentis a respeito da minha habilidade com a língua, as crianças nunca cansaram de debochar de meus erros quando falava ou de meus fracassos em entender algo que alguém havia dito. Os menores gostavam muito de debochar de mim. De fato, as crianças com freqüência estendiam minha incompetência com a língua a outras áreas de conhecimentos social e cultural.
Uma vez fomos até um zoológico e parque temático com reproduções de dinossauros. Durante nossa visita, disse a um pequeno grupo de crianças (em muito bom italiano, por sinal) que o dinossauro que estávamos vendo vivia no mesmo lugar que eu, nos Estados Unidos. De fato, sabia que era verdade porque estava escrito no cartaz ao lado. As crianças gargalharam com o meu comentário. Um menino, o Romano, gritou: “O Bill é louco! Diz que esse dinossauro vivia nos Estados Unidos”. Então apontando para o dinossauro, acrescentou: “Dá pra ver que vivia aqui mesmo!” Diante da lógica desta rebatida, nem tentei contestar a crítica contra o meu comentário.
Uma vez aceito pelas crianças eu observei e participei em suas atividades ao longo de dez meses. Nos últimos meses eu filmei estas atividades. Eu quero lhes mostrar filmes pequenos que capturam a natureza da minha participação assim como aspectos interessantes da cultura de pares das crianças.

[slide 10]

[dois filmes ‘La Banca’(‘o banco’) e ‘Il Capo’ (‘o chefe)]

No primeiro filme (‘La Banca’) as crianças tinham criado um banco especial, um banco itinerante, que vem a ti para te dar dinheiro. Esta é uma idéia altamente criativa ainda melhor que ir às caixas automáticas para sacar dinheiro. Eu estava impressionado e inicie meu papel na brincadeira pedindo dinheiro (40,000 liras). Mas o menino não me dera inicialmente dinheiro suficiente (somente 3 pedras ou 30,000) e quando eu pedi uma quantia maior ele me dera dinheiro demais. As crianças então brigaram um pouco pelo controle do banco, então eu disse adeus ao banco e eles marcharam adiante. Um ponto interessante aqui é que as crianças estavam violando uma regra que eu não sabia, que era brincar com a caixa grande vermelha usada para trazer os brinquedos para a área externa. Uma menina havia sido machucada anteriormente quando ela e outras crianças estavam brincando com a caixa. As professoras tinham proibido a brincadeira com a caixa. Depois da filmagem deste vídeo, as professoras me contaram que eles autorizaram o brinquedo por um tempo, até que as crianças brigaram pela caixa porque eles estavam fascinados com o banco. Então nós vimos que as crianças construíram seu banco inovador como um jeito de contornar uma regra que eles não gostavam.
No segundo vídeo [El capo] um menino é o chefe e tem um assistente que cuida das coisas quando ele não está. Eles são os patrões de muitas meninas que estão coletando formigas das paredes e as colocam em um balde e as trazem para o chefe para que as mantenha em seu balde. Esta brincadeira se desenvolve espontaneamente e o chefe senta em sua cadeira especial (na verdade, uma cadeira para uma boneca). E está cuidando dos seus trabalhadores. Quando o chefe retorna do banheiro, ele pede para segurar o meu microfone. Eu concordo porque, afinal de contas, ele era o chefe. Ele contou aos outros que ele estava segurando o microfone e registrou algumas falas enquanto o segurava. Eu o desencorajei um pouco e o motivei a continuar o seu trabalho enquanto as meninas lhe traziam mais formigas. Entretanto, ele deixou várias crianças terem a sua vez para falar no microfone e todas fingiram ser um apresentador de programas de variedades que são famosos na televisão italiana. Eles falavam “senhores e senhoras, aqui para vocês, o cantor ________” e então adicionavam o nome do chefe ou de outra criança. Um menino, o menino com o pino de boliche, me fez um dos cantores, usando meu primeiro nome e sobrenome ainda que ele tivesse ouvido meu sobrenome somente uma vez ou duas, e eu estava surpreso que ele sabia. Mais tarde este menino matou algumas das formigas e primeiramente o assistente do chefe e depois eu pedi para o chefe que o mandasse para parar. Ele bateu suavemente na minha cabeça com o pino de boliche por tê-lo denunciado, então eu joguei o pino. No entanto, rapidamente ele o recolheu e voltou a brincar. Como um todo, aqui nós vimos que eu estou envolvido na brincadeira e o microfone tem um efeito na natureza da brincadeira. Contudo, fazendo o microfone parte da brincadeira, somente o chefe podia ter e somente o chefe decidia quem e quanto poderia ser dito. Logo, o tema do faz-de-conta foi preservado.
Em Bolonha foi a primeira vez que eu retornei para uma escola de educação infantil por um segundo ano. As crianças de três e quatro anos estavam um ano mais velhas quando eu retornei em maio de 1985. A antecipação do meu retorno tinha sido aumentada por uma troca de cartas com as crianças e professoras. Eu fui cumprimentado na chegada pelas crianças e professoras, que me presentearam com um grande pôster no qual eles tinham desenhado minha imagem e escrito: “Bem tornado, Bill!” (“bem-vindo de volta, Bill”). Após me passarem o pôster, as crianças se aglutinaram a minha volta, me puxaram de forma a me agachar e cada criança teve a sua vez para me abraçar e beijar. No meio do júbilo eu notei alguns rostos novos – crianças de três anos que tinham entrado na escola durante a minha ausência. Um ou dois destes pequenos vieram timidamente para me tocar ou receber um beijo.
Mais tarde neste dia, depois que a comoção tinha passado, eu estava sentado em uma mesa com muitas crianças que estavam jogando um jogo de tabuleiro. Eu notei um menino pequeno cujo nome eu descobri depois que era Alberto, me olhando de longe. Ele finalmente se aproximou e perguntou: “Sei Bill, veramente?” (Tu és mesmo o Bill?”). “Sim eu sou mesmo o Bill”, eu respondi em italiano. Alberto, sorrindo, me examinou por alguns segundos e então correu para brincar com algumas outras crianças.
Um aspecto importante desta vinheta para a nossa discussão é a sua relação com o meu status participante na cultura local de pares e da escola. A festa que as crianças fizeram para marcar a minha volta para a escola esteve certamente relacionada com a duração da minha ausência - longe dos olhos, perto do coração. No entanto, a proximidade da minha relação com as crianças foi bem além da felicidade que acompanha o retorno de um velho amigo. Muitos etnógrafos das crianças têm apontado para a importância de se desenvolver um status participante como um adulto atípico, menos poderoso na pesquisa com crianças pequenas. Neste caso, como eu argumentei anteriormente, o fato de eu ser estrangeiro foi central para o meu status de participante. Minha competência limitada na língua italiana e a minha falta de conhecimento sobre o funcionamento da escola levou as crianças a me verem como um “adulto incompetente”, quem eles pudessem proteger e ajudar a se familiarizar na escola.
Um segundo aspecto importante da estória é a captura da relevância da etnografia longitudinal ao se estudar crianças pequenas. Trabalhos teóricos recentes nesta área são críticos de teorias tradicionais da socialização e do desenvolvimento das crianças pela sua marginalização. Visões tradicionais focalizam no desenvolvimento individual e vêem as crianças como incompletas – no processo de movimento da imaturidade para a competência do adulto. As abordagens novas argumentam contra o viés individualista das teorias tradicionais e reforçam a importância da ação coletiva e estrutura social. A etnografia longitudinal é um método ideal para esta aproximação teórica, particularmente quando se objetiva documentar as associações envolvendo crianças em suas culturas e quando focalizam em períodos-chave de transição nas vidas das crianças. Meu retorno para a escola foi a minha primeira tentativa de ampliar o desenho longitudinal da minha pesquisa em direção a este ideal.
Vamos retornar a nossa estória para considerar a riqueza da etnografia longitudinal. Eu não retornei simplesmente para o campo e renovei a minha pesquisa. Traços da minha presença prolongada foram ensaiados pelas crianças e professoras em suas conversas reflexivas sobre suas experiências passadas comigo. As memórias e emoções evocadas por estes discursos ocasionados informalmente foram aprofundados e intensificados por uma série de atividades mais focadas: a leitura e discussão de cartas e cartões que eu lhes enviei; a construção e aproveitamento do presente dado por mim (um móbile do dia das bruxas de jack-o lanterns (abóboras esculpidas com uma vela interna) em movimento, bruxas, aranhas e fantasmas, acompanhado de uma descrição de um extraordinário, mas estranho, feriado das crianças simbolizado no móbile; suas composições de cartas e trabalhos de arte para me enviar; suas discussões e antecipação do meu retorno; e sua construção de um pôster para comemorar a minha chegada. A versão destes discursos e atividades foram também produzidos no meu mundo – nas discussões em família, com meus colegas, com meus alunos, e em meus relatórios de pesquisa.
Logo, o meu retorno não marcou o começo de uma fase de um estudo longitudinal, mas uma evolução contínua da minha associação neste grupo. De volta, a documentação da reflexão nesta evolução é de importância teórica central para a apropriação simultânea cognitiva e emocional da natureza em desenvolvimento das associações das crianças nas culturas de pares locais e da escola.
Finalmente, existe um final da minha estória do menino pequeno, Alberto. Em suas interações com seus pares e professoras ao longo do ano, este Bill misterioso se tornou uma lenda para Alberto. Então, Alberto, como São Tomé, desejava confirmação direta do meu status. O interesse de Alberto e a fascinação comigo ilustra como o status participante de um etnógrafo se torna inserido na rede de relações de todos que ele estuda ao longo do tempo em uma pesquisa longitudinal. Ainda que Alberto necessitasse confirmar a realidade da minha existência, ele estava muito influenciado pelo que ele tinha aprendido sobre mim pelas outras crianças. Por exemplo, ele rapidamente entendeu e aproveitou do meu status de adulto incompetente.
Alguns dias depois do meu retorno, muitas crianças estavam me contando sobre coisas que aconteceram durante a minha ausência. A estória tinha que ser interrompida e repetida muitas vezes porque eu apresentava problemas de entendimento. Durante o último reconto, Alberto se juntou ao grupo e colocou suas mãos para cima rindo: “Ma uffa! Bill. Lui non capisce niente!” (“Oh cara! Bill. Ele não entende nada!”). Torna-se algo fácil para um adulto simpatizar com o status mais baixo das crianças na sociedade quando ele se descobre a vítima do deboche bem-sucedido de um menino de três anos.

Cultura de pares, o processo de alfabetização e a transição para a escola de ensino fundamental em Módena

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Em Módena, na Itália, eu conduzi um estudo sobre a transição das crianças da educação infantil para o ensino fundamental, com minha colega italiana Luisa Molinari. Nós continuamos o nosso estudo por meio de observações e entrevistas nos seguintes cinco anos das crianças na escola de ensino fundamental; seu enfoque principal era os cinco últimos meses de escola de educação infantil e os quatro primeiros meses de primeira série das crianças.
Meus primeiros dias na escola de educação infantil de Módena representaram um novo desafio para mim. Pela primeira vez, encontrava-me numa escola de educação infantil em que eu era o único verdadeiro novato. Nas pesquisas anteriores, entrava nas escolas no começo do semestre e pelo menos algumas das crianças (quando não todas) estavam, como eu, num ambiente novo. Além disso, neste exemplo, eu não apenas entrava no grupo no meio do ano letivo, mas quase todas as crianças e as professoras já se há dois anos e meio. Isso, junto com o fato de eu ser estrangeiro, aguçou muito a curiosidade de adultos e crianças a meu respeito durante meus primeiros dias na escola.
Como havia feito nas pesquisas anteriores, cheguei às áreas dos brinquedos, sentei e deixei as crianças reagirem à minha presença. Algumas das mais velhas e mais ativas de uma turma (Luciano, Elisa e Marina) me contavam o que estava acontecendo e cuidaram de mim durante as primeiras semanas. Acompanhavam-me até as aulas de música e de inglês, e ouvi que se referiam a mim, com as crianças das outras turmas de 4 e 5 anos da escola, dizendo: “O Bill é da nossa turma!”.
Embora as crianças gostassem da idéia de me ter em sua turma, como havia ocorrido em Bolonha, elas debochavam da minha pronúncia errada e dos meus erros de gramática, e afirmavam que “hanno capito niente” (“não entendiam nada”) do que eu estava dizendo. Várias crianças davam tapinhas no meu estômago, rindo da minha “pancia grande” (“barriga”). Um dia, quando já estava na escola há três semanas, estava sentado numa área onde uma menina, a Carlotta, que costumava debochar de mim, estava brincando de bonecas com várias outras meninas. De repente, ela levantou o meu suéter, pôs sua boneca por baixo e chamou todas: “Olhem, o Bill tá grávido!” Então tirou a boneca em meio às gargalhadas.
As crianças também não hesitavam em recusar algumas de minhas idéias ou reivindicações. Uma vez, brincando no pátio de fora com várias crianças, percebi que o Dario, o Renato e o Valério estavam juntando umas varetas de madeira no chão, debaixo das barras de escalada, para protegê-los dos outros, e discutiam a respeito do fogo. Disse, então, que os índios acendiam o fogo esfregando dois paus juntos. O Renato e o Valerio decidiram tentar, mas o Dario disse (com todas as letras): “O Bill é ‘pazzo’ (‘louco’), não sabe do que tá falando, não vai funcionar”. Os outros concordaram rapidamente e decidiram usar as varinhas para remexer as folhas.
Em contrapartida, as crianças percebiam que, na qualidade de adulto, eu tinha certas habilidades que lhes podiam ser úteis. Uma vez o Renato, o Angelo, o Mario e o Dario estavam brincando com blocos de construção de plástico de encaixar. Deram-me alguns que estavam encaixados e pediram se podiam separá-los. Aceitei essa tarefa de bom grado, mas logo percebi que as peças estavam muito mais bem unidas do que julgara. De fato, comecei a puxar com toda a força sem sucesso. A Giovanna, uma das professoras, passou por perto, riu e disse que as crianças haviam encontrado um uso prático para mim. Percebi que muitas peças estavam provavelmente presas juntas há muito tempo. Já estava pensando em abandonar a tarefa, quando tentei segurar uma peça na borda da mesa e a outra no ar. Puxei com força e as duas peças se soltaram. O Angelo e o Renato gritaram: “Parabéns, Bill!”, e imediatamente me deram várias outras peças. Separei facilmente as duas primeiras com meu método inventivo, mas tive mais problemas, pois várias peças simplesmente não se soltavam. Entretanto, os meninos estavam imitando o meu método com um certo sucesso, então insisti. Notei então que o Angelo e o Mario estavam guardando todas as peças separadas de volta na caixa. Contaram a várias outras crianças que o Bill conseguira separá-las, mas que não iam brincar com elas. Perguntei-me o porquê disso. Será que estavam com medo de as peças se unirem de novo? Seja como for, continuei trabalhando na minha tarefa ingrata até ouvir, para o meu alívio, Giovanna dizer que estava na hora de guardar tudo.
Uma manhã, depois de eu ter observado a escola por umas cinco semanas, Giovanna estava lendo um capítulo de O Mágico de Oz para as crianças. Após mais ou menos dez minutos de leitura e discussão, chamaram- na para atender um telefonema e ela me deu o livro, sugerindo que continuasse lendo a história. Conscientes de que seria uma tarefa difícil para mim, as crianças gritaram e bateram palmas pensando que era uma ótima idéia. Logo tive problemas para pronunciar a palavra “espantalho”, em italiano: “spaventapasseri”. As crianças riam e gritavam com minhas trombadas nesta e em outras palavras. Algumas crianças até se jogaram no chão fingindo crises de histeria diante da minha situação. Minha tarefa era mesmo muito complicada, pois parecia haver um “espantalho” em cada frase. Para meu alívio, a Giovanna voltou e, quando perguntou como tinha me saído, as crianças riram e disseram que eu não sabia ler muito bem. A Sandra gritou: “Não entendemos nada!” A Giovanna então pegou o livro de volta, mas as crianças gritaram: “Não, queremos que o Bill leia mais!” Pegando o livro de volta, penei para ler mais uma página em meio às risadas animadas das crianças antes de devolver o livro à Giovanna dizendo: “Basta cosi, adesso” (“Agora chega”).
Aqui, dois aspectos da resposta das crianças aos meus problemas com a língua diferem dos das minhas experiências anteriores em Bolonha. Primeiro, em Bolonha, observava um grande grupo de crianças com idades misturadas e competências de leitura e escrita muito diversas. Além do mais, embora as crianças de Bolonha fossem iniciadas à leitura e à escrita, isso não era uma parte central do currículo. No grupo de crianças de 5 anos de Módena, havia aulas e atividades relacionadas à leitura e escrita todos os dias, naquele segundo semestre de seu último ano na escola de educação infantil. Embora rissem dos meus erros, percebiam que eu sabia ler, e se identificavam com meus problemas até um certo ponto. Segundo, as crianças de Módena também estudavam inglês e percebiam que eu era competente naquela língua estrangeira que era muito difícil para elas. Ou seja, era tranqüilizador, para elas, que este novo adulto no meio delas compartilhasse alguns de seus desafios e experiências.
A linguagem era um aspecto central para a minha aceitação pelas crianças e professoras. Meu italiano havia melhorado consideravelmente desde o meu trabalho inicial em Bolonha. Eu podia conversar facilmente com as professoras das turmas de Módena. Mesmo assim, as professoras (Carla e Giovanna) notaram que eu estava longe se ser fluente em italiano e gostavam de debochar disto.
Em uma atividade de aprendizagem, às crianças eram apresentados vários objetos comuns de um domicílio, que eram então colocados em um saco. As professoras pediam a cada criança para introduzir a mão no saco, sem olhar, tocar, segurar, e identificar o objeto que elas selecionaram, e então tirá-lo do saco. Ela sabia, claro, que eu poderia identificar facilmente os objetos, mas ela sabia que talvez eu não soubesse os nomes italianos de muitos deles. Eu peguei um abridor de latas e notei imediatamente que eu estava com problemas. Eu gaguejei um pouco e então falei em italiano “é uma coisa que abre coisas”. Carla e Giovanna riram alto e uma criança, Sandra, que era rápida para julgar, gritou: “Ma Bill, è una apriscatole!” (“mas Bill, é um abridor de latas!”).
Em outro exemplo, as crianças estavam tendo uma aula de inglês na qual eles estavam tentando aprender a música “Twinkle, Twinkle, little star” (“Brilha, brilha, estrelinha”) em inglês. O professor de inglês, Joseph, primeiramente tinha o grupo inteiro de crianças cantando a música em italiano e então percorreu linha por linha com eles em inglês. Depois, ele dividiu as crianças em grupos de quatro crianças e pediu que cantassem a musica em inglês, avaliando as suas apresentações de 1 a 10. Eu pensei que cada grupo havia desempenhado muito bem, mas Joseph era um avaliador exigente e nenhum grupo teve notas maiores que quatro. Giovanna, que estava assistindo a aula, sugeriu que eu cantasse a música em inglês, como um modelo. Eu senti que isto era uma armação, mas eu fui a frente e, é claro, Joseph me deu uma nota perfeita.
“Agora, cante em italiano”, disse Giovanna.
“As crianças podem cantar mais uma vez em italiano para mim?”, eu pedi a Joseph.
Eles cantaram e eu ouvi de perto. Então, eu iniciei, mas depois não conseguia me lembrar das primeiras duas estrofes e eu errei outras muitas palavras e então parei de cantar completamente. Giovanna e as crianças riram alto e Joseph anunciou a minha nota: “Sotto zero!” (“abaixo de zero!”).
Ao final do ano escolar, no início de julho, eu havia me tornado um amigo próximo das crianças, das professoras, e muitos dos pais da educação infantil. Eu estava muito satisfeito por ter sido capaz de acompanhar as crianças para a escola no outono. Das 21 crianças da educação infantil, 16 (5 crianças foram para uma escola diferente) foram divididas em quatro grupos de primeiras-séries. Eu observei em um grupo diferente cada dia e freqüentemente passava as sextas-feiras visitando as professoras da educação infantil com seus novos grupos de crianças de 3 anos.
No início, no ensino fundamental, as crianças da educação infantil antiga imploravam: “Bill, pertença a nossa turma!”. No entanto, depois de poucas semanas eu soube que todas as outras crianças, quando eu parti em dezembro, e professoras me viam como parte da primeira série.
Entretanto, ocorreu um incidente no começo do período na primeira série que me deixou uma lembrança particular e demonstra a minha amizade profunda pelas crianças da primeira escola de educação infantil. Foi em meados de outubro de 1996, e já estava com as crianças da primeira série por pouco mais de um mês. Estava observando a primeira série B. A professora, Letizia, estava movendo as mesas, pois as crianças da primeira-série A iriam participar da aula. Enquanto eu a ajudava, senti o chão começar a mexer. Era um terremoto!
– “Temos que levar as crianças para fora”, disse a Letizia, enquanto saía rapidamente da sala.
Assumi que eu devia tomar conta das várias crianças na sala enquanto ela buscava as que estavam no corredor, no banheiro ou ainda estavam na sala da primeira-série A. Tudo foi muito rápido, e não apenas o chão tremeu por vários segundos, mas parecia que estava cedendo, dando a impressão de que eu estava sobre gelatina. Eu já tinha presenciado alguns tremores antes, mas esta sensação do terreno ceder era nova e aterrorizante. Juntei as cinco crianças da sala e fomos para fora, onde vi grupos de professoras e alunos se juntarem perto do portão principal. Estavam agrupados por turmas e grupos dentro das turmas. Algumas das crianças mais velhas estavam apavoradas e choravam, mas o tremor já havia parado. Olhando os prédios mais altos em torno da escola, podia ver que não havia estragos visíveis.
Enquanto levava minhas crianças para se juntar ao resto da primeira-série B, percebi que, para se protegerem da garoa, várias crianças se dirigiam a uma pequena área fechada, onde guardavam bicicletas. As professoras logo as mandaram sair dali – tratava-se de ficar longe de qualquer coisa que pudesse desmoronar – e voltarem para seu grupo. Então, um menino da primeira A, Mario, que eu também já conhecia da educação infantil, saiu correndo rumo à escola. Fui atrás dele, mas uma das professoras foi mais rápida que eu e o levou de volta ao seu grupo.
– “Mas preciso do meu lápis favorito”, protestou ele.
– “Está louco”, disse a professora; “Estamos em pleno terremoto, tu pegas o lápis depois”.
Várias crianças da educação infantil que estavam na primeira B já tinham se aproximado e seguravam os meus braços ou as minhas pernas enquanto a professora explicava que um terremoto tinha acabado de ocorrer. Depois de mais alguns minutos as coisas se acalmaram e as professoras deixaram as crianças circularem entre as turmas. Várias crianças das primeiras-séries A, C e D, que estavam na da educação infantil comigo, vieram correndo me perguntar: “Bill, também teve um terremoto na tua turma?”.

[Slide 13]

Como apontei anteriormente, em Módena nós planejamos o estudo de forma a documentar a transição das crianças da educação infantil para a escola de ensino fundamental e seu progresso na escola. Eu também discuti como eu fiz a transição para o ensino fundamental com as crianças. Um dos nossos interesses era o processo de alfabetização das crianças. Nós encontramos vários exemplos de projetos na educação infantil que apresentaram a alfabetização às crianças. A maioria destes envolvia a combinação de arte (ou comunicação visual) com a aprendizagem da leitura e escrita. Por exemplo, em um projeto as crianças foram solicitadas a desenhar, sendo que deviam utilizar a primeira letra dos seus nomes como uma característica central. Nós assistiremos a dois exemplos sobre isto no próximo slide:

[Slide 14]

Em projetos mais complexos de longo prazo que as professoras e crianças produziram coletivamente envolveram planejamento, execução e reprodução. Frequentemente discussões animadas e trabalhos de arte eram centrais na fase de reprodução. Os trabalhos de arte eram estavam em primeiro plano nos projetos e eram brilhantemente complexos. As crianças não só produziam narrativas para acompanhar o trabalho de arte, mas também assumiam uma função mais ativa na produção de textos. Por exemplo, especialmente na última metade do ano na escola, as crianças eram encorajadas a tentar escrever suas narrativas com a ajuda das professoras. Em um exemplo, as professoras e as crianças leram o Mágico de Oz em um período de oito semanas aproximadamente. Perto do fim da leitura, as crianças e professoras produziram um grande painel com o castelo de esmeraldas ao fundo e os quatro personagens principais (construídos com produtos tais como alumínio, palha e fio) colocados em primeiro plano.

[Slide 15]

Com a leitura da estória e o painel completo, as professoras trabalharam individualmente com as crianças, perguntando questões sobre a história, suas personagens preferidas, suas cenas preferidas, etc. As respostas das crianças eram registradas e gravadas. Após estas respostas eram registradas em um caderno pequeno no qual as crianças copiavam as suas narrativas que as professoras tinham escrito para elas – algumas crianças foram capazes para copiá-las sozinhas. Neste mesmo caderno, cada crianças desenhou suas personagens favoritas e escreveram o nome da personagem sobre o desenho. Depois, em um encontro do grupo, as crianças e professoras discutiram como a estória poderia ser improvisada com um conjunto de cenas e eles decidiram qual criança desenharia cada cena. Durante um período de três semanas, as crianças trabalharam em pequenos grupos junto com a professora, fizeram rascunhos das suas cenas selecionadas. Cada criança então descreveu sua cena para a professora, e com a ajuda para soletrar, escreveram esta descrição em um pedaço separado de papel. As crianças então produziram seus desenhos em pinturas e colagem. Nós podemos ver um exemplo desses rascunhos, descrições e versões finais nos próximos dois slides.

[slides 16 e 17]

Após, as professoras tomaram todos os rascunhos e descrições, as copiaram, e fizeram um novo livro do Mágico de Oz, organizando as cenas em ordem com a ajuda e comentários das crianças. Todas as crianças receberam cópias do livro para ter com eles ao final do ano escolar e eu tive um também. Portanto, cada criança contribuiu individualmente novamente para um projeto de alfabetização coletivo que eles eram capazes de manter como parte da sua cultura material. Neste exemplo a natureza coletiva do projeto de longo termo resultou em uma combinação da cultura da escola e de pares, como um evento de alfabetização se torna parte da experiência do grupo e é importante para as atividades compartilhadas das crianças no contexto. A atividade é também estimulante para as crianças como parte das suas culturas de pares em que o livro final reflete a produção de grupo no qual cada criança fez uma contribuição individual e singular.
O interesse das crianças de Módena na alfabetização pode também estar em seus brinquedos espontâneos e outras rotinas da cultura de pares. Este interesse era primeiramente aparente em relação à rotina desenvolvida entre as crianças e eu. No início da minha pesquisa, as crianças me perguntaram sobre o que eu estava escrevendo no meu pequeno caderno no qual eu registrava notas de campo. Eu respondi que eu registrava coisas que eles falavam e que eu poderia me lembrar mais tarde. Também, eu frequentemente mostrava o caderno para as crianças, contando a eles que a maior parte do que escrevia era em inglês. As crianças inspecionavam o caderno e durante os primeiros dois meses de observação (fevereiro e março), eles freqüentemente pediam para desenhar nele. No inicio do terceiro mês, no entanto, eles começaram a registrar e escrever coisas no caderno. As crianças costumavam escrever seus nomes ou o nome dos seus amigos ou irmãos. Eles também começaram a escrever o nome das coisas que eles desenhavam, como “árvore” ou “casa”. Em junho, as crianças registraram e escreveram no caderno todos os dias. Durante os últimos dois meses do termo da escola, 16 das 17 crianças que freqüentavam regularmente registraram ou escreveram alguma coisa em meu caderno.
O interesse das crianças na alfabetização era também aparente em outras atividades de pares. Em seus desenhos com freqüência eles reproduziam palavras ou frases de estórias que eram lidas para eles. Eles também discutiam como eles leriam e escreveriam na primeira série.

[Slide 18]

14 de Junho de 1996 Uma carta para a irmãzinha do Luciano

Eu estou sentado em uma escrivaninha com Luciano, Stefania e outras muitas crianças. Luciano está escrevendo uma carta para a sua irmã. Stefania me pede para escrever o que Luciano está fazendo no meu caderno. Então eu o faço em italiano e mostro para ela: “Luciano scrive una lettera per la sua sorellina”. Luciano então sugere que Stefania também escreva uma carta a sua irmã, o que ela faz com a ajuda de Luciano. A carta diz: Cara Luísa, “TANTI BACIONI DA STEFANIA LUCIANO E DA BILL”. Este exemplo é importante porque demonstra as habilidades das crianças na escrita, mas também porque mostra sua consciência do interesse do pesquisador em suas habilidades de escrita. As crianças não somente escreveram dados no meu caderno, mas me diziam o que elas pensam que é importante sobre a cultura de pares para incluir em minhas notas. Portanto, é um belo exemplo de pesquisa com as crianças comparada à sobre as crianças.

[Slide 19]

Transição para a escola de ensino fundamental

Talvez a preparação mais óbvia e importante ou o que eu chamo de eventos iniciais relacionados com a transição para a primeira série foram as duas visitas na metade de maio para a mais próxima escola de ensino fundamental que a maioria das crianças freqüentaria no próximo ano escolar. Eu acompanhei as crianças e professoras nestas visitas, e filmamos as atividades.

[Vídeo do início da visita para a escola]

Nos dias que seguiram as visitas, durante os momentos de encontro na educação infantil, discussões gerais foram realizadas sobre o que as crianças tinham observado e aprendido. Eles tiveram a oportunidade de perguntar e falar sobre qualquer preocupação, medos, ou curiosidades sobre a transição vindoura. As discussões cobriam um amplo escopo de assuntos: que tinham mesas separadas para cada criança, com mesas para as professoras na frente; que não teriam oportunidades para sestear ao meio-dia; que lá teria menos tempo para brincar e mais para trabalhar; que teriam muitos temas de casa; que lá havia um ginásio; que os banheiros eram separados por gênero e eram diferentes daqueles da educação infantil. Finalmente muitas crianças mencionaram seus irmãos mais velhos e coisas que eles haviam falado sobre a escola de ensino fundamental.

Tornando-se um aluno da primeira-série

[Slide 20]

Ao final do ano escolar no início de Julho, eu havia me tornado um amigo próximo das crianças, das professoras, e muitos dos pais da educação infantil. Eu estava muito satisfeito por ter sido capaz de acompanhar as crianças para a escola no outono. Das 21 crianças da educação infantil, 16 (5 crianças foram para uma escola diferente) foram divididas em quatro grupos de primeiras-séries. Eu observei em um grupo diferente cada dia e frequentemente passava as sextas-feiras visitando as professoras da educação infantil com seus novos grupos de crianças de 3 anos.
No inicio, no ensino fundamental, as crianças da educação infantil antiga tentavam implorar, dizendo: “Bill, pertença a nossa turma!”. No entanto, depois de poucas semanas eu soube que todas as outras crianças, no tempo que eu parti em dezembro, as crianças e professoras me viam como parte da primeira série. (REPETIDO – VER PÁGINA 18) Eu continuei sendo um membro deste grupo de crianças e suas professoras através da escola.
Dado que meu conhecimento de italiano continuava elementar na primeira série, eu tive uma mesa em cada sala de aula e fazia as atividades das crianças com elas. Eu estava à frente em matemática, mas no mesmo nível ou somente um pouquinho avançado na escrita de italiano. Na terceira série, as crianças tinham me alcançado ou passado em italiano e estavam aprendendo matemática rapidamente. Nos dias iniciais da primeira-série, as crianças mostraram certa impaciência porque esperavam que seriam solicitadas a ler e escrever imediatamente e também ter temas de casa (“I compiti”) todos os dias. De fato, o aspecto principal das suas percepções da primeira-série na suas cultura de pares era que ser aluno da primeira-série significava aprender a ler e escrever e ter temas, coisas que raramente ocorriam na educação infantil. No entanto, as professoras da primeira série começaram vagarosamente ocupando o tempo com temas sociais (as crianças puderam se apresentar e falar sobre si com os outros). Também houve tempo para a distribuição dos livros-texto providenciados pela escola e checagem dos materiais que as crianças trouxeram para a sala de aula. Em uma das primeiras-séries várias crianças perguntavam para a professora sobre “I compiti”, questionando se elas teriam tema de casa no segundo dia da escola. A professora me olhou e riu, dizendo, “I compiti. I compiti. Este é somente o primeiro dia!”.
Em uma turma, a professora, Rossana, combinou o objetivo das crianças aprenderem os nomes umas das outras com os exercícios de leitura iniciais. As crianças colocaram os seus cadernos sobre as suas mesas e Rossana os inspecionou para checar se seus nomes estavam neles. Eles agora leram coletivamente placas que diziam: NOI SIAMO IN PRIMA C [nós estamos na primeira série C]. IO SONO [eu sou]. Então todos os nomes são listados. Eles lêem outras placas CIAO BIMBI [Ei crianças!] IERI ABBIAMO FATTO LE FOTO IN CLASSE E IN GIARDINO [Ontem nós fotografamos a turma no jardim].
Então Rossana pediu que achassem outras combinações de palavras nas placas que fossem da mesma letra dos seus nomes. Ela também perguntou qual é a diferença entre os nomes Mario masculino e Luisa feminino.
O ponto é que nomes masculinos geralmente finalizam com “o” ou “e” e femininos com “a”
Ela então prossegue e aponta para a diferença de gênero para o resto dos nomes da turma. Gabriele brinca, dizendo que o nome de um menino é feminino (por exemplo, nomes como Luca ou Andréa, comum em nomes italianos, são exceções desta regra). Agora a professora solicita a eles que escrevam os nomes de todas as crianças nos seus cadernos. Masculinos em azul e femininos em cor-de-rosa. Aqui nós novamente vimos que os nomes das crianças desempenham um importante papel na aquisição da alfabetização em geral. A professora criou uma atividade para a turma que envolve o uso dos nomes de forma a aprender como ler e também entender as complexidades da linguagem que eles estão aprendendo. Estas atividades sugerem que a aquisição da alfabetização se torna uma importante parte das rotinas de atividades diárias das crianças da escola de ensino fundamental, como esta atividade é algo estruturado e dirigido pela professora. No entanto, a atividade também é coletiva, portanto sugerindo que a aquisição da alfabetização, mesmo quando envolve atividades mais adiantadas, pode ser facilitada pela interação de pares. Finalmente, o exercício dá às crianças a oportunidade de brincar e debochar de cada uma sobre as exceções relacionadas aos nomes masculinos, algo valorizado na cultura de pares.
As professoras na primeira-série C e primeira-série D partiram dos interesses das crianças no processo de alfabetização para organizar um passeio de campo para coletar folhas. As crianças tomaram seus lápis e cadernos e no caminho para o parque, pararam para escrever palavras que eles viam ao redor deles.

[Vídeo do passeio das folhas]

Nos primeiros meses na primeira série, as atividades de alfabetização se tornaram mais estruturadas, mas as professoras permaneciam tentando aprofundar nas crianças o amor pelos trabalhos de arte que tinham sido desenvolvidos na educação infantil. Todavia, existia um gradual, mas claro, movimento de trabalhos de arte do primeiro plano das atividades de alfabetização dentro do plano de fundo. Como eu discuti previamente, a arte desempenha um papel fundamental na aquisição das crianças da alfabetização inicial. No entanto, como o nível de alfabetização das crianças aumentou, esta função se tornou secundária para a produção de palavras escritas nos projetos criativos das crianças.
 Um exemplo que demonstra o foco da leitura e escrita de textos das crianças, mas também usando arte, pode ser visto em um exercício no qual as crianças tiveram que inventar rimas a partir de uma frase feita “Chi cerca ____, trova____” (“Ele que procura por ____, acha _____.”). nós podemos ver isto no próximo slide.

[Slide 21]

Nós podemos ver neste slide que as crianças produziram frases criativas que estavam relacionadas aos eventos das suas culturas de pares ( como a perda do dente-de-leite) ou coisas que eram atrativas a eles (o dinossauro gigante) ou  arbitrário (um urso viajante). Nós também vemos o trabalho de arte impressionante das crianças, o que era a característica principal das suas produções na área da alfabetização na primeira-série. Mas agora é a alfabetização (leitura e escrita) que está no primeiro plano enquanto o trabalho de arte é mais decorativo e está no plano de fundo se comparado com os projetos na educação infantil. É interessante que os professores continuam encorajando, e as crianças realmente gostam de se comunicar visualmente através do trabalho de arte assim como a palavra escrita.
 Depois que eu completei as minhas observações na turma da primeira série em dezembro de 1996, eu mandei cartas e presentes para as crianças para ver como elas estavam. As professoras e solicitaram às crianças para responder, mas não especificaram o que elas deveriam escrever. Em resumo, as cartas das crianças (e muitas incluíam desenhos) eram espontâneas. Nós podemos ver uma destas cartas de Chiara no próximo slide que foi produzida em fevereiro da primeira série, aproximadamente no carnaval.

[Slides 22 e 23]

Finalmente, nós podemos ver ainda mais avanço na alfabetização na carta enviada para mim por Stefania em dezembro de 1998, quando ela estava na terceira-série. Eu havia retornado para visitar e observar na escola na primavera de 1996, 1997 e 1998 e continuei mandando cartas.

[Slides 24 e 25]

A carta de Stefania é altamente complexa. Ela é quase completamente correta gramaticalmente, com erros mínimos de um acento mal empregado na palavra Lunedí (í ao invés de ì). Um das primeiras coisas que eu notei é que a carta de Stefania está escrita em uma cuidadosa letra cursiva e ela também integra arte e escrita. Esta integração é um bom exemplo de como, uma vez que as crianças progridem nas suas habilidades de alfabetização, a escrita se torna mais prevalecente e arte é transformada em pano de fundo e usada para decorar o texto. A arte na carta de Stefania também reflete o que ela está escrevendo para mim sobre (por exemplo, quando ela escreve sobre o natal, ela pergunta sobre a tradição americana contém árvores decoradas, e desenhos e fotografias de uma árvore). Estes pequenos desenhos também servem como pontos da transição na carta, ela escreve pensamentos completos ou questiona e então completa estes pensamentos com um desenho. Depois do desenho, ela escreve outro pensamento ou pergunta.
Ela inicia a sua carta me contando sobre um livro que sua turma leu na segunda-série, e como este foi transformado em um filme que ela assistirá com seus colegas. Este evento é claramente importante para ela, e é interessante notar que seu primeiro relatório de eventos nesta carta é relevante e baseado em uma atividade de alfabetização do passado. Isto mostra que o processo de alfabetização é contínuo e que os eventos nas vidas das crianças partem de sua experiências passadas. Nós vemos que Stefania está escrevendo para mim sobre o que está na sua mente, e a divulgação deste filme é visto como um evento notório na sua vida; ela me contou as notícias principais primeiro.
A sua carta se movimenta em um estilo linear, e reflete o que é importante para ela naquele momento. Depois que ela escreve sobre o filme, ela escreve sobre o Natal. Ela me pergunta sobre a tradição de natal nos Estados Unidos, e da mesma forma escreve sobre a tradição na Itália para mim (por exemplo, ela pergunta se os americanos comem doces especiais no natal, e me conta que italianos comem panettone, um bolo de natal italiano). Esta parte da carta é atrativa porque ela usa a convenção de um estilo de escrita de pergunta-resposta, mostrando que ela está interessada em aprender sobre a tradição americana, mas também relata os costumes italianos. De fato, com o estilo da carta parece que ela está conversando comigo.
Stefania então me conta sobre algumas das mudanças que ocorreram na escola. Ela menciona a professora nova (Melania, que é a sua professora de inglês) e escreve como eles estão festejando o natal e como tem aprendido algumas canções americanas para a ocasião. Nós podemos constatar a partir do seu recurso editorial que a introdução da festa de natal e do aprendizado da canção é algo que ocorreu no mesmo dia em que ela escreve a carta e volta para inserir estas noticias. Portanto, ao escrever a carta, ela lembra este evento e usa o recurso editorial para inserir a informação que “natal branco” teve sido aprendida no mesmo dia que ela está escrevendo a carta. Esta inserção transmite as emoções muito positivas do aprendizado desta canção americana, e também, de ser capaz de comunicar esta ocorrência feliz para mim porque sou americano. Enquanto a escrita da carta é um evento individual, nós vimos que Stefania está refletindo e comunicando a felicidade de uma atividade coletiva que é altamente importante na cultura de pares.
Ela então descreve os alunos novos da escola e como ela e seus colegas aprenderam canções nas línguas destes novos colegas. Sua menção ao aprendizado de novas canções em novas línguas é interessante porque ela está, novamente, relatando sobre as atividades de aquisição da alfabetização/linguagem que ocorreram recentemente. Vale a pena notar também que ela expressa a diversidade cultural das vidas de seus novos colegas e entende que isto é algo que me interessaria. Finalmente, esta discussão é uma ferramenta para exibir a sua sofisticação crescente como uma pessoa que tem novos amigos exóticos e que pode cantar em outras línguas. Estes eventos também têm um elemento coletivo porque eles descrevem mudanças importantes da cultura de grupo e de pares.

Deixando o campo

Em um estudo longitudinal de vários anos como o que realizei em Módena e em muitas etnografias é difícil deixar o campo. Eu fiz muitos amigos (crianças, professores e pais) ao longo de um período de seis anos através de observações e entrevistas. Quando as crianças concluíram o primeiro ciclo do ensino fundamental, eu continuei entrevistando uma pequena amostra de oito crianças e suas famílias quando as crianças estavam na metade do segundo ciclo do ensino fundamental. Todavia, eu não revi outras crianças e famílias. Eu mantive contato com as professoras, voltando para as escolas e as visitando pessoalmente, e também mentive contato com as professoras e crianças por e-mail e cartas (especialmente no Natal). Meus últimos dias na escola de ensino fundamental de Módena foram muito especiais já que as crianças e professoras prepararam uma festa de aniversário surpresa, como podemos ver nestes dois slides.

[Slides 26 e 27]

As crianças também me deram presentes que eles fizeram e um livro especial onde eles escreveram mensagens de amizade em inglês.
Finalmente eu participei de uma festa de fim de ano na escola na qual foi muito especial para todas as crianças da quinta-série e suas famílias. Para eles como para mim, esta festa marcou o fim das interações rotineiras e amizades entre muitas das crianças e seus pais que se conheceram na educação infantil ou primeira-série. Logo, esta festa foi uma forma de deixar o campo, mas neste estudo eu manterei contato com algumas das professoras, crianças e suas famílias como amigos próximos para o resto da minha vida. Estes temas pessoais relacionados ao afastamento do campo captam a qualidade humana profunda da pesquisa etnográfica.

Referências bibliográficas
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[1] NT: Opto aqui por traduzir para os termos utilizados no sistema educacional brasileiro.


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